sábado, outubro 28, 2006

O texto anterior era o primeiro conto de "O metabolismo das pedras". O próximo é o primeiro capítulo de "A volta dos que não foram". Espero que apreciem, e deixem comentários a respeito...
Cheers!
Tadeu Sena.

I

Perto de X. existe uma pequena vila chamada Toríbio que não chega aos seiscentos habitantes. A aldeia é politicamente dividida entre os municípios de X. e T. (ou seja, um empurra os problemas administrativos locais para o outro sem que nenhum dos dois se pronuncie). Em período eleitoral aparecem candidatos de ambos, com seus circos armados à caça de votos.
Toríbio é uma aldeota preponderantemente rural, com ruelas de barro empesteadas de bosta de vaca, casas pequenas, galinhas por todos os lados, porcos caminhando livremente pelas calçadas e homens picando fumo para cigarros de palha. Nos bares, em meio ao cheiro forte de cachaça recém-retirada do alambique do vilarejo (aguardente de ótima qualidade) podem-se ouvir as vozes exaltadas dos homens jogando truco.
Mas o mais curioso na vila de Toríbio é o fato de ela estar realmente – literalmente – na boca do Inferno. Embora haja quem afirme que a porta do Inferno fique em Cerbère, na fronteira franco-espanhola, em Comala, nos confins do planalto mexicano, que compositores germânicos barganhem suas almas em Palestrina, cidade que teve sua influência demoníaca atestada até por Dante, que existam embaixadores demoníacos em Guernesey, Ortach e demais ilhotas da Mancha, ou, ainda, em paragens do Oriente próximo, da Ásia distante, como Teku-Benga, nos ritos turbulentos da África Negra ou no deserto escaldante (onde o Inferno é gelado), e por valorosos que fossem tais escribas; não conheciam nossas plagas austrais, principalmente as banhadas pelos humores atlânticos. Em Toríbio localizam-se os portões infernais, e é lá que os mortos tomam a fresca quando o Inferno está muito quente (logicamente, pelas leis da termodinâmica, se a taxa de crescimento infernal é proporcionalmente menor que a de massa adentrante (consideramos aqui que as almas têm massa) no quadrado da distância – comprovando a endotermia infernal – , e atentando ao fato recorrente de que essa massa exorbita o espaço disponível, elevando os níveis de calor acima do suportável, o excedente interno precisa ser aliviado para que não explodam os reinos de belzebu. É nesse momento que as almas saem em busca de refresco (ao contrário do que se pensa, as almas podem sair). O Inferno tem cozinheiros ingleses, taxistas franceses, mulheres norte-americanas, juízes de futebol, uísque paraguaio e administradores brasileiros que possibilitam a saída. É comprovado o caso de um político local que chegou ao cargo de senador e fora expulso do Inferno por querer mandar mais que o próprio Diabo. Oxalá fosse possível elaborar-se todo um tomo tratando apenas desses aspectos, mas, como não convém a preâmbulo demorar-se (e este já se adianta ao enfado...), voltemos a Toríbio e à nossa história.

terça-feira, outubro 24, 2006

É, vamos escrever...
Isso aqui vai servir para trazer à tona parte do lixo que eu escrevo, tanto pessoalmente quanto literariamente. Não leve nada a sério, pois eu também não levo. Mas estamos começando (eu e quem? é possível que ninguém leia isto...), e todo começo é assim... Ontem, depois do debate, descobri que existe gente mais medíocre que eu, e o pior, é candidato a presidente!!!! E eu que não sou nem vereador ainda! (hahahahaha!!!!!!) Agora sei porque o chamam "picolé de chuchu!"
Mas voltando a falar disso aqui, espero que vocês, visitantes, (se há algum) apreciem o que aqui existe. Para comemorar esta estréia (se é que ela é digna de comemoração...), vai um texto já antigo e conhecido da maioria dos meus amigos. Não tente copiar ou plagiar, já esta registrado (rs!). Pode ser ruim, mas eu tenho muito ciúme do que faço.
Cheers!!!!

A Inundação

Subia eu a rua Padre Celestino numa ensolarada tarde de segunda-feira. O sol queimava a pele de meu rosto e meus braços, fazendo-me transpirar sobremaneira, conferindo-me um aspecto pegajoso e repugnante, mas, com o mesmo efeito, dando um ar de atração e agradável volúpia à pequena figura de cabelos negros a minha frente, o que me faz concluir que a mediocridade da vida é pouco mais suportável do que imaginava momentos antes. Vou subindo a rua hipnotizado pela figura de pele morena que caminha pouco acima, em direção a uma das principais avenidas da cidade.
A poluição lançada por carros e chaminés de indústrias, aliada à tarde de calor intenso, faz com que o próprio ar se torne sujo, criando uma atmosfera pegajosa e dando um aspecto gorduroso e resinoso às pessoas e aos prédios, em meio ao asfalto quente que, em partes, vai derretendo. Afora isso, dou-me conta de que, por baixo da pesada calça jeans e da camisa (que não deixa de ser grossa para um dia de calor insuportável como este), estou completamente banhado em suor, o que me faz perceber que mesmo se pudesse ter qualquer contato com a pequena morena à minha frente, ela acharia meu aspecto repugnante, e que o simples fato de poder observa-la caminhando displicentemente à minha frente já é suficiente colírio para os olhos. Conformo-me com este pensamento.
Eis então que, quando já me encontro a algumas dezenas de metros do topo da rua íngreme, sua esquina, vejo, de repente, que uma enorme enxurrada começa a descer violentamente, arrastando as barracas dos camelôs da esquina a alguns metros; as pessoas correm desesperadamente frente à inusitada torrente que toma conta de toda a rua e vai-se aproximando cada vez mais, uma incrível e inesperada borrasca de laranjas, grandes e pequenas, cítricas e cruéis, que desce rolando ladeira abaixo formando uma onda gigante, um maremoto de frutas desvairadas que, cada vez mais, vai tomando conta da via, arrastando pessoas, cobrindo carros, levando um sujeito que inocentemente andava de bicicleta de um lado para o outro. Desce incessantemente até alcançar a pequena e bela morena que caminha a minha frente, e em seguida, a mim.
Sinto o golpe das frutas que me derrubam com violência e vão-me arrastando rua abaixo por vários metros, num movimento de subida e descida que me faz esfolar no asfalto, enquanto tento livrar-me da borrasca de laranjas. O sumo ácido das frutas esmagadas faz com que meus ferimentos ardam e a dor se intensifique, enquanto me choco com a parede de um posto de gasolina lá embaixo, no final da rua...

Sei que houve alegria e comoção por toda a cidade, tanto naquele dia como nos seguintes. Os comerciantes não mais tiveram baixas nos seus estoques de laranja por um longo tempo. Os garotos que entregavam panfletos nas ruas do centro da cidade regozijavam-se com laranjas. Nos bares, os bêbados encontravam o sabor ácido da laranja entre um gole e outro, enquanto surgiam bebidas variadas que empregavam a fruta em sua preparação. Os desempregados não mais passavam sede ao sair em busca de emprego no centro da cidade, pois o suco de laranja agora tinha preços baixíssimos. Nos restaurantes, a laranja e seu suco eram oferecidos gratuitamente e com fartura nas refeições. Surgiam variadas receitas de bolos, compotas, sobremesas e pratos que faziam a diversão das donas de casa e desafiavam os maîtres e cozinheiros.
Nunca pude saber o real motivo da inundação de laranjas que invadiu a cidade naquela insuportavelmente quente tarde de segunda-feira, pois morri no mesmo dia, soterrado pela enxurrada. Seu sumo ácido atiçava meus ferimentos, enquanto seu peso quebrava meus ossos e me impedia de respirar. As ambulâncias que foram enviadas para socorrer os feridos nunca chegaram ao seu destino, visto que todas as ruas encontravam-se tomadas pelas frutas e o trânsito tornara-se impraticável.
Mas a alma humana tem a faculdade de com tudo se conformar.
Momentos antes de a vida abandonar meu corpo, consegui o tão sonhado contato com a pequena figura morena que jazia soterrada a poucos metros do meu corpo inerte. Com muito esforço pude ouvir sua voz em meio à balbúrdia de frutas, antes que ambos expirássemos, e, num momento de reflexão que só a proximidade da morte é capaz de conceder, pude ouvi-la dizendo antes que desse seu último suspiro e deixasse de um a vez esta vida:
- Graças a Deus que foram laranjas. Imagine se fossem abacaxis...

Tadeu Sena, 10/02/2002.