terça-feira, dezembro 20, 2011

quinta-feira, dezembro 15, 2011

"Brazil", by TErry Gilliam



Um dos melhores (e mais bizarros) filmes que eu já vi. Semelhanças entre ele e "1984", de George Orwell, não são meras coincidências.

quinta-feira, novembro 24, 2011

terça-feira, novembro 08, 2011

Espanhistão. Interessante análise da crise econômica mundial e da bolha que nos aguarda.

terça-feira, novembro 01, 2011




O pé


Reconheceu o oficial que fazia a guarda de seus bens quando abriu a porta. A novidade era que vinha acompanhado, além dos dois policiais de costume, de dois homens em jalecos brancos, cada um com uma maleta. O primeiro, com um bigodinho um tanto mal-aparado, parecia nervoso, os tiques pronunciados nos dedos e nas sobrancelhas, enquanto o segundo aparentava um tédio quotidiano e impaciente, daqueles que rezam para que o dia termine logo para poder voltar para casa. Decerto, detestava o serviço.
A visita era incógnita. O banco, a quem devia, como milhões nos dias atuais, já lhe tomara tudo. A princípio, fora o carro, um velho automóvel que pouco se prestava às necessidades básicas, mas que valia uns tostões. Adiante, foi tomada a casa, que não era das maiores, mas lhe servia de moradia. Com o despejo, teve de mudar-se para a casa dos pais que, de jeito nenhum, se parecia mais com um lar ou coisa que o valesse. Assim, foram-lhe sendo apreendidos os bens menores, a televisão, o aparelho de som, o computador; até a cama, fazendo-o dormir no num colchão ao rês do chão no quartinho que ocupava na morada dos progenitores, tudo em nome de dívidas que, em vez de diminuírem com as apreensões judiciais, apenas aumentavam, com a autoridade bancária alegando que estavam sendo simples amortizações de juros; a instituição alegava que estava guardando os bens até que a dívida fosse saldada em dias financeiramente melhores.
Ao pasmo, o gerente anunciou cordialmente:
“Boa tarde. Viemos recolher o que cabe ao banco I. para diminuir sua dívida”.
Apresentava documentos que comprovavam a dívida, todos assinados por autoridades respaldando a ação judicial e autorizando o agente a recolher os bens indicados. Ante o sorriso nervoso, o homem desobstruiu o caminho para que vissem que, no tugúrio atulhado, restavam apenas o velho e murcho colchão e duas pilhas de roupa, uma de sujas, aglomeradas num canto, e outra de limpas, dobradas noutro.
“Viemos recolher seu pé esquerdo para amortização dos juros da dívida X-96512”.
Vinham recolher-lhe o pé esquerdo como forma de minimizar o prejuízo. Boquiaberto, o homem levantou as mãos em sinal de “não”, mas a força policial o instava a não resistir brandindo cacetetes. Tentou argumentar, mas nada demovia o grupo de realizar seu trabalho. Diante das negativas do devedor, o anestesista, tenso, interveio:
“Vamos fazer isso logo. Será melhor, tanto para nós como para o senhor”.
Ao que o cirurgião, o entediado responsável pela operação, emendou:
“Ainda temos nove operações como essa para fazer. Considere. Estamos apenas realizando nosso trabalho. Temos também mulher e filhos esperando em casa. É apenas mais um serviço, e não o mais complicado. Não sabe como é difícil extrair um rim...”
diante das afirmações, o homem leu os documentos apresentados. O agente atalhou que seu pé passaria bem, em moderníssimos compartimentos criogênicos até que a dívida fosse saldada. O homem argumentou:
“Mas se não consigo emprego nem com os dois pés, quem dirá com um!”
Ao que o agente redargüiu:
“Senhor, não podemos nos responsabilizar pelos seus fracassos, tanto financeiros quanto educacionais. E como disse o doutor V. aqui, estamos apenas realizando nosso trabalho, não é culpa nossa que o senhor deva perder o pé, mas de suas dívidas para com a instituição”.
O agente tomou o contrato dizendo:
“A instituição tem um programa de seguro de inclusão social que cobre todas as despesas da remoção do pé”.
“Mas se não consigo emprego nem são, quem dirá aleijado?”
Ao que o agente respondeu:
“No parágrafo quarto do presente contrato encontra-se o termo de responsabilidade social de nossa empresa, que garante ao senhor um emprego em nosso banco para que possa amortizar a dívida a ponto de ter seu pé de volta. Com os descontos debitados de seu salário, poderá produzir alguma renda capaz de reaver o órgão perdido. É só ler e calcular o montante necessário para ter o pé devolvido”.
O homem leu, indignado, a cláusula. Com uma calculadora, fez as contas de quanto tempo demoraria para ter o pé de volta, descontados os impostos e taxas praticados pelo banco: quinze anos!
“Não é justo!”
“Sim, existem precedentes jurídicos. Quando um indivíduo vai preso por dívidas, tem todo o seu corpo alienado do convívio social por conta disso. Nós estamos apenas pedindo uma parte ínfima do seu corpo, menos de cinco por cento”.
“Mas como vou me sustentar sem o meu pé?”
“Fique tranqüilo. A empresa já pensou em tudo isso. Ao contrário do que possa parecer, preocupamo-nos, principalmente, com a sua felicidade, com a sua liberdade”.
O anestesista, impaciente, aplicou-lhe um sedativo no braço esquerdo. Por mais que tentasse argumentar, os policiais o agarraram brandindo termos de reintegração de posse enquanto as palavras saíam-lhe pastosas, dementes com o efeito do medicamento. Desfaleceu, desacordado.
Quando acordou, no chão imundo em que dormira, procurou observar minuciosamente o quarto vazio. No canto da parede, entre uma pilha de roupas e outra, havia um par de muletas. Cortesia do banco.

João Tadeu Sena, 30/09/2011.

terça-feira, junho 28, 2011



Telepathic Netbanking
Foi difícil entender como o homem, em seu impecável uniforme negro chegou à minha porta, mas o via pelo olho mágico com o envelope na mão. Tentava imaginar como a portaria o havia deixado passar, como os vizinhos não o haviam estranhado e como, por fim, chagara ao meu apartamento sem ser interpelado com a missiva que brandia insistentemente imaginando, talvez, que eu o estivesse observando pelo lado de dentro.
A primeira resolução foi de não atendê-lo, deixando-o plantado até que a frustração o dominasse e fosse embora, mas o homem parecia saber que eu estava em casa. Além disso, era manhã de sábado e todos os que conhecem os meus hábitos saberiam que estaria em casa nessa circunstância. Ademais, pela insistência, o caso poderia ser sério, uma possível intimação, um processo ou coisa do tipo, apesar de ter certeza de não ter tomado nenhuma atitude condenável em todos esses anos – pensei em estar sendo uma nova espécie de Josef K, com seu dilema kafkiano contra uma incógnita instituição jurídica – e, por isso, resolvi abrir a porta.
O entregador não mudou de expressão. Deu-me um ‘bom dia’ mecânico e insípido e estendeu-me o envelope e uma prancheta com uma caneta para que assinasse o comprovante de recebimento. O envelope trazia algo chato e rígido em seu interior, um cartão. Curioso, perguntei pelo conteúdo.
“É um cartão de crédito do Banco X, entregue como solicitado pelo senhor. Tomamos o cuidado de entregá-lo o mais rapidamente possível para evitar que sua ansiedade em recebê-lo não manchasse a imagem de nossa instituição com uma prematura reclamação”.
“Mas eu não pedi cartão nenhum”!
“Pediu sim, senhor. E temos aqui todos os documentos que o comprovam”.
Apresentou-me alguns formulários em duplicata com meu nome, endereço, local de trabalho, telefones para contato e uma confirmação do pedido do serviço. Numa ficha definitiva, assinaturas minhas, do gerente do banco e de mais quatro testemunhas. Indignado, contestei:
“Mas eu não pedi cartão nenhum! Como conseguiu essas informações”?
“Nossa empresa conta com um inovador serviço de mensagens telepáticas, com vários operadores trabalhando em leitores que sondam as ondas cerebrais de nossos futuros clientes. O serviço é tão eficiente que lemos os desejos de nossos consumidores antes mesmo que os tenham, e antecipamos assim o incômodo de uma ligação ou uma visita para fazer a solicitação. Para abreviar também o incômodo burocrático com as negociações, preparamos todo o contrato baseado nas preferências do contratante, que só tem o trabalho de assiná-lo para começar a utilizar o serviço.
“Mas isso é um absurdo! E essas assinaturas? De onde vieram”?
Atônito, lia a minha assinatura, que se parecia fiel e convincente se comparada à praticada pelo meu punho. Surpresa maior viria ao ver, a de minha própria mãe com nome, números de documentos, telefones e endereço, sendo minha suposta fiadora. À farsa, trabalho de exímios falsários, exigi explicações, às quais o homem respondeu:
“Nossa instituição, além do grupo de leitores telepáticos, tem também uma conceituadíssima equipe de médiuns que psicografam, com base na vontade de nossos clientes, suas assinaturas para que sequer tenham o esforço de empunhar uma caneta para assinar o contrato”.
“Mas eu não quero nada disso”!
“Sim, o senhor quer e ambos sabemos disso. Foi por isso que assinou o contrato”.
Estava impassível. Boquiaberto, tentava ler o contrato, mas o vocabulário era tão técnico e específico que não reconheci as cláusulas apresentadas, os benefícios, vantagens – se é que havia algum – e os reveses. Laconicamente, questionei.
“Mas quanto é que eu vou pagar por isso”?
“Não é assunto para se tratar aqui e agora, na sua porta, à vista dos vizinhos. Faz parte de nossa política de privacidade não discutir assuntos de caráter financeiro e comercial onde haja ouvidos alheios. Para que tenhamos respaldo de nossos clientes, temos que ser uma empresa responsável, salvaguardando-os de qualquer ameaça ao patrimônio. A equação que contabiliza o investimento nos nossos serviços, assim como taxas, impostos e juros, para as ocasiões em que o senhor atrasar o pagamento da obrigação mensal já lhe foi enviada por e-mail, é só consultar o serviço eletrônico”.
O homem, depois de tais esclarecimentos, fez uma mesura, agradeceu e se despediu desaparecendo, esfumaçando-se no ar. A procurá-lo, gritei o nome bordado no uniforme. Uma voz distante respondeu de longe, quase desaparecendo:
“Desculpe, senhor, mas não lhe posso mais dar atenção, pois meu tempo de permanência neste apartamento terminou. Meu holograma já foi direcionado para a porta do próximo cliente por meio do serviço de teletransporte da empresa, pois temos tempo limitado para cada entrega. Para maiores esclarecimentos, ligue para o SAC da empresa; o número está impresso no verso do cartão e o serviço de atendimento custa apenas π x 0,0108 + 9,36% do valor da mensalidade. Estamos felizes em tê-lo conosco. Boas compras!
A voz desapareceu no ar e, com o silêncio, considerei impossível conseguir qualquer outra informação. Entrei no apartamento com o envelope na mão, cerrando a porta atrás de mim. O silêncio reconfortante durou apenas alguns segundos, pois, num átimo, a campainha voltou a tocar. Na soleira, um homem de uniforme negro segurava uma prancheta com uma caneta e brandia, na altura dos olhos, a chave de um automóvel.

João Tadeu Sena, 11/06/2011.

sexta-feira, maio 27, 2011



EM BREVE, GRANDE LANÇAMENTO DE "CAGAS", A LEVISTA DO HOMEM DE LÍNGUA PLESA. PRIMEIRA EDIÇÃO, ESPECIAL IMPRESSA EM PAPEL HIGIÊNICO. A REVISTA PARA TODAS AS HORAS...

quarta-feira, maio 25, 2011

Mais do mesmo!

Seria muito interessante se realmente prestássemos atenção nas letras das músicas que ouvimos para que alguns equívocos fossem desfeitos. Um dos melhores exemplos é a que, por mais de trinta anos, tem sido o hino dos revolucionários de ocasião, o hit da banda brasiliense Legião Urbana que hoje integra a trilha sonora da novela global das nove, coroando com inconfundíveis louros mais um “subversivo” no "mainstream". Não quero colocar em questão a qualidade musical do grupo, pois também o apreciei no final da década de oitenta, nos tenros anos da adolescência. O que se procura aqui é tentar descobrir o que pensava – se é que o fazia – o senhor Renato Manfredini Junior ao bradar aos quatro ventos a pergunta: “Que país é esse?”
De cara, encontramos as primeiras contradições: “Nas favelas, no senado/ sujeira pra todo lado”. Quando faz tal comparação, Renato estabelece uma relação de igualdade quando as coloca sob o denominador comum da "sujeira", potencializada ainda com a expressão "pra todo lado", como se o mesmo tipo de delito fosse praticado nos morros da periferias das metrópoles e nos suntuosos corredores da Capital Federal de forma generalizada, como se ambos tivessem a mesma índole, sem levar em conta parâmetros históricos e sociais, colocando-os no mesmo saco sem observar a diferença entre subsistência e vaidade, e o fato de que um dos motivos da existência das favelas é justamente a elite que historicamente ocupa o senado. Por fim, basta que perguntemos a qualquer habitante do morro se gostaria de ser comparado a um parlamentar.
No dístico seguinte, mais uma incoerência: “Ninguém respeita a constituição/ mas todos acreditam no futuro da Nação”, com se respeito e obediência à Carta Magna garantissem o desenvolvimento do país. Ademais, a canção foi escrita durante a passagem de Russo pela banda punk Aborto Elétrico, no final dos anos setenta, e a Constituição em vigor era a de 1967/69, uma das mais repressivas que o país já teve, encomendada pelo governo Castelo Branco; institucionalizava o regime militar e homologava-o no poder anulando o caráter transitório da “revolução” perpetrada pelas forças armadas. A Carta, entre outras coisas, estabelecia eleições indiretas, pena de morte para crimes contra a segurança nacional (condenando a “subversão”, termo ambíguo que só encontrava a justa definição no porrete de um ‘milico’) e cerceava o direito à greve e a liberdade de expressão, proporcionando futuros decretos que possibilitariam as leis de censura e banimento com as quais tantos políticos, intelectuais, artistas e músicos foram perseguidos durante o período. Não seria um contra-senso uma banda punk defender tal documento? A isso, segue-se o refrão. Talvez, por precaução, a música só foi lançada pela banda quase dez anos depois, no álbum homônimo de 1987.
A segunda estrofe inicia-se com uma sucessão de topônimos: Amazonas, Araguaia, Baixada Fluminense, Mato Grosso, Minas Gerais e Nordeste. A pausa antes de "Nordeste", seguida de "tudo em paz" dá a idéia de que tudo corre pacífica e harmoniosamente na região, historicamente, a mais pobre e desigual do país. Depois da expressão, o autor retoma o caráter caótico da letra, falando de morte e sangue: “Na morte eu descanso mas o sangue anda solto/ manchando os papéis, documentos fiéis/ ao descanso do patrão”. O eu - lírico, protagonista da canção, revela que, apesar da imobilidade sugerida por morte e descanso, seu sangue permanece ativo a manchar misteriosos papéis que garantem o repouso patronal que a Constituição defendida na estrofe anterior procura garantir.
A estrofe final fala em Terceiro Mundo, expressão muito em voga nos idos da Guerra Fria, termo usado para classificar países subdesenvolvidos, ou seja, pobres, e taxando-nos, inclusive, como piada se comparados às potências estrangeiras. Porém, com a conjunção adversativa "mas", Russo propõe a solução de nossos problemas (Raul Seixas em Aluga-se também a propunha, ironicamente, ao contrário do músico do Planalto Central, que parece bem sério em suas colocações): vender as almas dos índios num leilão. Faltou falar a que nação indígena se referia, pois boa parte de nossos nativos foi exterminada quando da invasão européia, que teve de importar gente da África para executar as tarefas para as quais os índios “não serviam”, como diziam os portugueses, muitas vezes por pura e simples recusa. Assim, nossos bravos tupiniquins e tamoios são escassos nos grandes centros financeiros próximos ao litoral, sendo a mão-de-obra, à época da composição da letra, oriunda principalmente das favelas e bairros pobres vilipendiados pelo autor na primeira estrofe. Pioraria ainda se usássemos para “almas” a acepção utilizada para os servos das glebas russas, estabelecendo uma relação de semelhança entre as relações de trabalho do regime czarista e as práticas históricas dos latifúndios brasileiros, que Renato provavelmente, pelo sobrenome artístico adotado – “Russo” – deveria conhecer. Conhecendo-as ou não, as perspectivas não melhoram. A tudo isso, segue-se o refrão, repetitivo e grudento em forma de pergunta que, como vimos pela letra da canção, mais confunde que busca respostas.
Como disse, esta análise não procura fazer um julgamento estético da música praticada pelo grupo, mas explicitar inegáveis incoerências temáticas na letra. Ela tem servido de hino e bandeira a várias encarnações de incorformismo, inclusive, a atual, e vale-nos refletir, por extensão: o que pensam as massas que bradam, entre outras palavras de ordem, o famoso refrão da Legião Urbana? Falta, de fato, para que nossos protestos sejam legítimos, um pouco de conhecimento histórico, político e social do país e, também, doses significativas de senso crítico. Por mais que uma legião, esta, de fãs, siga-os cegamente e usem tal canção como pendão de seu inconformismo, é paradoxal confirmar que quanto à realidade nacional há pouco conhecimento e, liricamente, o cantor fala demais para dizer muito pouco.

João Tadeu Sena, 24/05/2011.






¹Para maiores informações, basta procurar qualquer obra realista russa do século XIX, como as de Dostoievski, Tolstoi ou Gógol deste principalmente o romance “Almas mortas”, deste último.
²Roberto Schwarz faz um interessante comentário sobre essa comparação no artigo As idéias fora do lugar, do livro “Ao vencedor, as batatas” (Duas cidades/ Editora 34, São Paulo, 2000, pp. 21-31). Machado de Assis tem também uma crônica, “Abolição e liberdade”, de 11/05/1888 que trata da questão escravo/trabalho no Brasil, exatamente como se deu na libertação dos servos na Rússia.

quarta-feira, abril 06, 2011




Um churrasco
Nosso domingo de sol foi brindado com um magnífico churrasco organizado pelos colegas da faculdade. Animados, alugaram um sítio na cidade vizinha e organizaram, como uma grande extensão do botequim diário da porta da universidade, a aprazível festa. Interessado, peguei uma carona logo de manhã para o recanto campestre com um colega de sala que estava estendendo a balada da noite anterior.
Chegando ao local da festa tudo já estava preparado, com a churrasqueira acesa e muita gente na piscina, latas de cerveja vazias por todos os lados. Os organizadores, que passaram a noite no local, já adiantavam o clima de festa. O fumo da carne tomava conta do lugar, invadindo, com seu odor característico, as narinas desavisadas.
Os carros começavam a chegar ocupando o gramado; os cavalos e camelos dos outros estudantes esforçavam-se para, entre os pneus, arrancar tufos de erva para reabastecer o reservatório de energia para a viagem de volta com o dono no lombo e, como sempre acontecia, mais um ou dois companheiros embriagados impossibilitados de retornar sozinhos, cambaleando sobre as corcovas. Em pouco tempo, haveria muita gente assim.
A reunião seguia alegremente com a piscina lotada, desalojando a saparia que observava tristemente à beira com os olhos arregalados; gente cantando pela casa e a fumaça e a cerveja rolando soltas, até que um colega já coberto de fuligem e gordura preta – assemelhava-se a um ferreiro europeu do medievo, com manchas de carvão pelo corpo e os pelos do braço e os cabelos untados da graxa negra que saía da grelha – e com um avental bordado I S2 Mambo veio para dar a triste notícia: a carne do churrasco havia acabado. A pequena chácara era suficientemente distante para que qualquer um de nós saísse para buscar mais antes que o domingo terminasse.
“Não tem problema”, disse meu amigo motorista, “eu resolvo isso”. Abriu prontamente o porta-malas do automóvel e, quando esperávamos todos que de lá sairia uma peça de picanha ou de alcatra, nosso camarada apresentou um enorme cutelo de açougueiro. Arregaçou a manga do braço direito, membro que foi anestesiado para que fosse feita a primeira incisão. Cortaram-lhe a pele num corte reto e circular em volta do bíceps, logo onde se junta ao ombro. Com uma machadinha, talharam os ossos da base do braço e um nervo amarelo escuro e grosso apareceu, sendo, a seguir, cortado á faca. O braço desmembrado teve mais um corte na parte interna, de onde se podia ver, entre o sangue que escorria, a carne vermelha de meu amigo, com suas fibras rubras e a gordura esbranquiçada. Os amigos seguraram a pele e foram puxando pelas pontas até desgrudarem-na totalmente do músculo, deixando-o nu, uma peça idêntica às que vemos penduradas nas vitrinas dos açougues – a epiderme foi esticada e pendurada na parede, um belo enfeite com lidas tatuagens. “Salve, a carne voltou ao cardápio!”, comemoravam nossos colegas estudantes. Desossaram-no, pois os ossos atrapalhariam na mastigação, e, aos cortes, vimos as pontas brancas brotando da manta vermelha. O mesmo foi feito com o antebraço, e logo tínhamos três fabulosos bifes, dois do bíceps – um mais gorduroso da parte interna e outro da parte externa que, por ser mais robusto, seria servido mal-passado – e outro do antebraço que, mais fino e mais magro, sairia mais queimadinho. As peças foram salgadas e colocadas na churrasqueira. Alguns colegas já salivavam com o crepitar da gordura sobre o carvão em brasa. As mãos, duras e ossudas, foram dispensadas e servidas aos cães, mas os dedos foram também colocados no fogo para servir de tira-gosto.
As pessoas deleitavam-se com aquela carne tenra, mastigavam o braço do meu amigo com júbilo e elogiavam o churrasqueiro pela preparação da carne. Alguns comiam com pão e vinagrete, o que acentuava o sabor do membro do colega, outros, com bastante pimenta. A galera da cerveja chupava os ossinhos dos dedos como se chupam as patas dos caranguejos à beira da praia. Observava a cena de canibalismo horrorizado, mas as pessoas se mostravam satisfatoriamente felizes com a reposição do alimento, que trituravam alegremente com os dentes.
Ao cair da noite, diante da impossibilidade do meu amigo ao volante, tivemos que pegar uma carona no camelo de um colega. O animal cambaleava pela estrada diante do peso extra. Nosso estudante tinha um torniquete na base do membro mutilado, e a camisa tinha várias manchas rubro-cobres de sangue seco. Conversava alegremente com o condutor do animal como se nada tivesse acontecido enquanto vacilava sobre a corcova na impossibilidade de segurar com as duas mãos as rédeas do animal que nos carregava. Elogiava o camarada por ter comprado um camelo e não um dromedário, que dificultaria o transporte do trio.
Envergonhado, resolvi tocar no assunto:
“Não se arrepende de ter perdido o braço?”
“Não. As pessoas estavam com fome e eu não estava usando o braço no momento. Ademais, eu ainda tenho o outro. Tomei o cuidado de dar o braço direito, pois sou canhoto.”
“Mas eles cortaram, arrancaram a pele, desossaram, cortaram em bifes, salgaram, assaram e comeram o TEU braço!”
“Ah, não importa. Fazem o mesmo com os bois. A diferença é que não tem anestesia, e, com eles, usam o corpo todo.”

João Tadeu Sena, 06/04/2011.

segunda-feira, abril 04, 2011

Há mais textos aqui:

http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=84826

Alguns contos, inclusive, ainda inéditos no "Lobo".

Agradeço a atenção, amigos!


A eternidade

Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo o salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão.

As vitrines, Chico Buarque.

Impossível precisar por que as pessoas se fotografam tanto. Mais valeria se se fotografassem os animais agora tão raros em vez dos humanos que por aí abundam e, ao contrário dos bichos, nada têm de original. Talvez seja nostalgia de retrato, pois, antes da fotografia, quando se retratava a efígie humana a pincel e tinta, até os indivíduos mais esdrúxulos ficavam interessantes nas telas dos mestres, e não são poucos os exemplos que o comprovam, as gravuras estão aí em museus e galerias como esta para comprovar a afirmação. Ademais, na imaginação dos artistas há sempre um pouco mais a oferecer que o caráter vulgar do registro da foto; os sorrisos são mais radiantes, os olhares mais altivos e serenos e as cores da face mais vivas que as expressões pouco interessantes e previsíveis da película.
Muitas vezes surgem paixões inesperadas por indivíduos que sequer existiram na realidade, mas que surgiram da mente de gente de inteligência superior; isso, não raro, acontece. A imutabilidade do aspecto físico, o não envelhecimento e a beleza retratada na pintura encantam, apaixonam, conquistam, seduzem. Desde que saí das mãos do meu criador, as paredes mudaram, trocaram de cor e textura, descascaram-se por descuido e foram restauradas, mas eu permaneço imutável. E isso já há várias dezenas de anos.

Lembro-me da primeira vez que ela apareceu na galeria. Era ainda estudante, bastante nova, e estava acompanhando uma excursão do colégio onde estudava. Em meio à explicação do guia a respeito da biografia do meu modelo – desaparecido há anos! – nossos olhares se cruzaram e foi como se uma repentina supernova acendesse-se no céu noturno, ofuscando o brilho das estrelas comuns. O uniforme escolar não prejudicava o brilho daqueles olhos e cabelos, ambos castanhos, ou a bela face arredondada. Um último olhar, de relance, selou a visita, os alunos dirigindo-se à próxima gravura numa despedida triste.
Voltou, e não poucas vezes. Conheci-lhe a família numa visita conjunta; o pai, impaciente e de pouca sensibilidade artística, mas logo percebi que herdara os olhos da mãe, que queria sair logo dali para ver obras contemporâneas. Retiraram-se, mas louvaram o interesse precoce da filha pelos clássicos.
E ela retornou muitas outras vezes com amigos, professores, gente estranha; a vi crescer, estudar, reparei em suas mudanças de aparência, novos cortes e penteados, roupas diferenciadas, foi adquirindo trejeitos e mudou de expressão e perfume várias vezes. Percebi que nos quentes dias de verão era mais lépida que nos frios do inverno, quando era mais contida e introspectiva, quase tímida e triste, mas com o mesmo fulgor no olhar que vira na primeira vez. Ficava horas fitando-me e, quando se convencia de que de mim não viria qualquer gesto ou palavra, retirava-se frustrada do salão, sempre com aquele furtivo olhar final.
Vi-lhe os cabelos perderem a tonalidade, tornando-se de um branco que ela por um tempo insistiu em tingir da cor original, tentando, em vão, preservar-lhes a juventude, a pele do rosto perder o viço e tornar-se enrugada e as carnes do corpo perder a firmeza e a volúpia de outrora, mas os olhos sempre emitiam o mesmo brilho, mesmo agora intermediados por lentes de óculos cada vez mais espessas, mais grossas.
Com o tempo, tornou-se sua companheira inseparável uma bela bengala de madeira envernizada, recurso imprescindível dos que mancam, mas toda a sua decrepitude era compensada pelo olhar, a expressão ígnea que a acompanhou por todo esse tempo, inclusive, em sua última visita, numa cadeira de rodas e com um xale vermelho sobre as pernas. E eu, como da primeira vez, envergonhado pelas roupas antiquadas, pela severidade do olhar, pelo visual fora de moda. Uma lágrima desceu-lhe dos olhos prenunciando a despedida.
Depois daquela visita, a galeria tornou-se um lugar mais frio e tristonho, e não procurei olhar mais nenhum visitante nos olhos.

João Tadeu Sena, 04/04/2011.

sábado, abril 02, 2011



O metrô

Estação Anhangabaú, hora do rush, plataformas lotadas, trens lotados; mais gente chegando e contaminando a estação já apinhada com os germes do exterior, tornando o ar mais pesado e o ambiente, de furtivas luzes brancas, sombras negras e maligna penumbra, onde o esperado ruído agudo e metálico anuncia o trovão ensurdecedor do comboio chegando, trazendo mais gente e bactérias aéreas enclausuradas na lata hermeticamente fechada.
As portas, ao parar do trem, abrem-se num clangor estrepitoso; camisas grudadas de suor, pouco espaço para tanta gente, mas que, mesmo diante da impossibilidade de se abarrotar mais o vagão, vão preenchendo cada canto, cada espaço, cada milímetro entre corpos e ferros, roupas e transpiração, bancos e pessoas enferrujadas.
O clangor repete-se ao som da campainha. Novamente, o ar irrespirável, germes concentrados.
O trem entra em movimento para a escuridão do túnel e ganha velocidade. A próxima estação não é anunciada; acende-se a Sé à frente e vai passando, vai passando... e passa! As pessoas olham apavoradas o novo túnel que enegrece as janelas, alguns felizes por abreviar-se o tempo de viagem, outros indignados por planejarem a baldeação justamente naquele entroncamento, a maioria, indiferente.
O céu desenha-se na saída do túnel às alturas. Estranhamente, a estação Pedro II, sobre o opaco rio Tamanduateí também passa incólume. Mais alguns olhos indiferentes tingem-se de um fogo furioso, e mais ainda quando o trem passa pelo Brás.
O comboio vai ganhando velocidade, os out-doors do lado de fora tornam-se irreconhecíveis, os viadutos transformam-se em linhas difusas, desce-se das alturas ao rês do chão passando em fulgores laranjas Bresser, Belém e a grandiosa estação Tatuapé, frustrando a conexão com a CPTM. Os muros e prédios adjacentes viram borrões trosgrados, a lua, no céu escuro, um gigantesco planeta, enquanto passam as luzes de Carrão, Penha e Guilhermina-Esperança. Patriarca e Arthur Alvim tingem os olhares de estrelas de fogo, alguns desesperados pela velocidade, outros pela perda do destino, alguns se conformando, outros, simplesmente indiferentes. Corinthians-Itaquera catapulta-nos ao espaço, na falta de mais trilhos por onde rodar, enquanto o trem continua a percorrer seu caminho por paisagens inusitadas, manchas coloridas se fundem e criam imagens catastróficas, caóticas, voluptuosas. Uma tempestade imensa se forma e desaba do lado de fora; as pessoas gritam, estendem as mãos aos céus, ajoelham-se pedindo perdão enquanto a composição passa por novas estações desconhecidas, uma lilás, a seguinte gótica, a terceira subterrânea, sob as bases da terra onde se vêem diamantes, ametistas, opalas, golfinhos, baleias e o mar, o sol poente, os planetas, as tempestades anelantes e espirais da atmosfera de Júpiter, os anéis de Saturno...
É nesse momento que a última senhora à minha esquerda, na poltrona cinza destinada aos idosos, e a única ainda completamente alheia à insólita viagem, me olha diretamente nos olhos como se naquele olhar houvesse um punhal desembainhado, pronto para sangrar um oponente até a morte, fazendo a pergunta fatal que lhe surge dos lábios ressequidos:
“Senhor, já passou da hora da novela?”

João Tadeu Sena, 27/03/2005.

O professor

E eis que, naquela manhã, Walter resolveu apresentar um fabuloso espetáculo aos seus alunos. Professor de História, chegou mais cedo a sua unidade, retirou uma caixa de madeira de considerável tamanho de seu carro – os vários furos nas laterais denunciavam a carga viva – e, com algum esforço levou a caixa adesivada de “CUIDADO! FRÁGIL” para dentro da escola.
Os alunos, naquela manhã, observavam atônitos o volume recoberto por um pano branco na frente da sala entre os comentários do futebol da noite anterior e os namoricos de corredor até que o professor, de súbito, descobriu a caixa e revelou aos alunos seu misterioso conteúdo: a própria Loba romana, ainda com Rômulo e Remo pendentes de suas tetas.
Deslumbrados, os alunos apontavam a cena bizarra; duas crianças humanas fedendo a almíscar fartando-se do leite de um animal selvagem, saciando-se do líquido lácteo que escorria aos borbotões pelos cantos de suas bocas, e, gorgolejando, deglutiam o rico nutriente. Ambos escandalizavam pela nudez e pelas unhas sujas e crescidas dos pés e das mãos. Os cabelos desgrenhados e esvoaçantes traziam folhas secas entre os fios, e o corpo nu estava enlameado pelo barro de uma distante floresta do Lácio. Os petizes, quando saciados, grunhiam satisfeitos imitando o repouso de sua ama silvestre. O professor recobriu a exposição para salvaguardar o trio que ressonava entre as palhas dispostas no assoalho da cela para passar à explanação. Explicou toda a história do abandono das crianças na floresta e os problemas políticos na sucessão de Alba Longa e como, por conseguinte, a capital do futuro Império herdaria o nome de um dos guris, que o docente, ao levantar o pano suavemente para não incomodar, apontou satisfeito com o dedo.
Na mesma tarde, o telefone da escola começou a tocar. O primeiro pai reclamava da nudez dos meninos, alegando atentado violento ao pudor e prometendo descobrir toda a rede de pedofilia e exploração de menores encabeçada pelo professor. Depois, outros ligaram. Um advogado progenitor, aos brados, reclamava-se representantes dos meninos e acusava-o de corrupção e exploração de menores, de aproveitar-se do trabalho infantil e de cárcere privado, alardeando a gorda indenização que receberia, ele e seus clientes ao final do processo. Um outro, evangélico homicida, acusava o funcionário de atentar contra a moral e os bons costumes, afirmava que receberia vultoso castigo por heresia por ensinar mitos pagãos a crianças inocentes.
Muitos foram direto à Ouvidoria Pública, e, nos dias seguintes, uma enxurrada de documentos protocolados inundaram a mesa do diretor exigindo uma ação disciplinar para com seu subordinado, fazendo com que toda a equipe administrativa se mobilizasse durante as semanas seguintes para responder a tantas reclamações e denúncias.
Porém, nada aplacava a fúria da comunidade. Os pais, empunhando forcados e foices, marchavam aos gritos pelo bairro e, por fim, cercaram o prédio. A manifestação chamou a atenção da imprensa, que, prontamente, compareceu para cumprir seu dever. Os apresentadores vociferavam enfáticos, e sua euforia contaminava a população.
Para evitar a hecatombe, o diretor foi obrigado a entregar Walter à fúria daquele braço secular da opinião pública. Vexado, porém polidamente, o homem falou com calma e humildade à turba ensandecida, procurando desculpar-se e remediar a situação, e colocando-se à disposição da municipalidade, da Associação de pais e Mestres, ao Conselho Tutelar, ao Conselho Regional de Enfermagem, à Ordem dos Advogados e à Liga das Senhoras Católicas para maiores esclarecimentos e, para dar veracidade ao depoimento, afirmou que estava revendo todo o seu planejamento e o projeto pedagógico. Enfatizou, inclusive, que já havia desistido de apresentar o King-Kong à sexta série na próxima aula.

João Tadeu Sena, 31/03/2011