sexta-feira, maio 27, 2011



EM BREVE, GRANDE LANÇAMENTO DE "CAGAS", A LEVISTA DO HOMEM DE LÍNGUA PLESA. PRIMEIRA EDIÇÃO, ESPECIAL IMPRESSA EM PAPEL HIGIÊNICO. A REVISTA PARA TODAS AS HORAS...

quarta-feira, maio 25, 2011

Mais do mesmo!

Seria muito interessante se realmente prestássemos atenção nas letras das músicas que ouvimos para que alguns equívocos fossem desfeitos. Um dos melhores exemplos é a que, por mais de trinta anos, tem sido o hino dos revolucionários de ocasião, o hit da banda brasiliense Legião Urbana que hoje integra a trilha sonora da novela global das nove, coroando com inconfundíveis louros mais um “subversivo” no "mainstream". Não quero colocar em questão a qualidade musical do grupo, pois também o apreciei no final da década de oitenta, nos tenros anos da adolescência. O que se procura aqui é tentar descobrir o que pensava – se é que o fazia – o senhor Renato Manfredini Junior ao bradar aos quatro ventos a pergunta: “Que país é esse?”
De cara, encontramos as primeiras contradições: “Nas favelas, no senado/ sujeira pra todo lado”. Quando faz tal comparação, Renato estabelece uma relação de igualdade quando as coloca sob o denominador comum da "sujeira", potencializada ainda com a expressão "pra todo lado", como se o mesmo tipo de delito fosse praticado nos morros da periferias das metrópoles e nos suntuosos corredores da Capital Federal de forma generalizada, como se ambos tivessem a mesma índole, sem levar em conta parâmetros históricos e sociais, colocando-os no mesmo saco sem observar a diferença entre subsistência e vaidade, e o fato de que um dos motivos da existência das favelas é justamente a elite que historicamente ocupa o senado. Por fim, basta que perguntemos a qualquer habitante do morro se gostaria de ser comparado a um parlamentar.
No dístico seguinte, mais uma incoerência: “Ninguém respeita a constituição/ mas todos acreditam no futuro da Nação”, com se respeito e obediência à Carta Magna garantissem o desenvolvimento do país. Ademais, a canção foi escrita durante a passagem de Russo pela banda punk Aborto Elétrico, no final dos anos setenta, e a Constituição em vigor era a de 1967/69, uma das mais repressivas que o país já teve, encomendada pelo governo Castelo Branco; institucionalizava o regime militar e homologava-o no poder anulando o caráter transitório da “revolução” perpetrada pelas forças armadas. A Carta, entre outras coisas, estabelecia eleições indiretas, pena de morte para crimes contra a segurança nacional (condenando a “subversão”, termo ambíguo que só encontrava a justa definição no porrete de um ‘milico’) e cerceava o direito à greve e a liberdade de expressão, proporcionando futuros decretos que possibilitariam as leis de censura e banimento com as quais tantos políticos, intelectuais, artistas e músicos foram perseguidos durante o período. Não seria um contra-senso uma banda punk defender tal documento? A isso, segue-se o refrão. Talvez, por precaução, a música só foi lançada pela banda quase dez anos depois, no álbum homônimo de 1987.
A segunda estrofe inicia-se com uma sucessão de topônimos: Amazonas, Araguaia, Baixada Fluminense, Mato Grosso, Minas Gerais e Nordeste. A pausa antes de "Nordeste", seguida de "tudo em paz" dá a idéia de que tudo corre pacífica e harmoniosamente na região, historicamente, a mais pobre e desigual do país. Depois da expressão, o autor retoma o caráter caótico da letra, falando de morte e sangue: “Na morte eu descanso mas o sangue anda solto/ manchando os papéis, documentos fiéis/ ao descanso do patrão”. O eu - lírico, protagonista da canção, revela que, apesar da imobilidade sugerida por morte e descanso, seu sangue permanece ativo a manchar misteriosos papéis que garantem o repouso patronal que a Constituição defendida na estrofe anterior procura garantir.
A estrofe final fala em Terceiro Mundo, expressão muito em voga nos idos da Guerra Fria, termo usado para classificar países subdesenvolvidos, ou seja, pobres, e taxando-nos, inclusive, como piada se comparados às potências estrangeiras. Porém, com a conjunção adversativa "mas", Russo propõe a solução de nossos problemas (Raul Seixas em Aluga-se também a propunha, ironicamente, ao contrário do músico do Planalto Central, que parece bem sério em suas colocações): vender as almas dos índios num leilão. Faltou falar a que nação indígena se referia, pois boa parte de nossos nativos foi exterminada quando da invasão européia, que teve de importar gente da África para executar as tarefas para as quais os índios “não serviam”, como diziam os portugueses, muitas vezes por pura e simples recusa. Assim, nossos bravos tupiniquins e tamoios são escassos nos grandes centros financeiros próximos ao litoral, sendo a mão-de-obra, à época da composição da letra, oriunda principalmente das favelas e bairros pobres vilipendiados pelo autor na primeira estrofe. Pioraria ainda se usássemos para “almas” a acepção utilizada para os servos das glebas russas, estabelecendo uma relação de semelhança entre as relações de trabalho do regime czarista e as práticas históricas dos latifúndios brasileiros, que Renato provavelmente, pelo sobrenome artístico adotado – “Russo” – deveria conhecer. Conhecendo-as ou não, as perspectivas não melhoram. A tudo isso, segue-se o refrão, repetitivo e grudento em forma de pergunta que, como vimos pela letra da canção, mais confunde que busca respostas.
Como disse, esta análise não procura fazer um julgamento estético da música praticada pelo grupo, mas explicitar inegáveis incoerências temáticas na letra. Ela tem servido de hino e bandeira a várias encarnações de incorformismo, inclusive, a atual, e vale-nos refletir, por extensão: o que pensam as massas que bradam, entre outras palavras de ordem, o famoso refrão da Legião Urbana? Falta, de fato, para que nossos protestos sejam legítimos, um pouco de conhecimento histórico, político e social do país e, também, doses significativas de senso crítico. Por mais que uma legião, esta, de fãs, siga-os cegamente e usem tal canção como pendão de seu inconformismo, é paradoxal confirmar que quanto à realidade nacional há pouco conhecimento e, liricamente, o cantor fala demais para dizer muito pouco.

João Tadeu Sena, 24/05/2011.






¹Para maiores informações, basta procurar qualquer obra realista russa do século XIX, como as de Dostoievski, Tolstoi ou Gógol deste principalmente o romance “Almas mortas”, deste último.
²Roberto Schwarz faz um interessante comentário sobre essa comparação no artigo As idéias fora do lugar, do livro “Ao vencedor, as batatas” (Duas cidades/ Editora 34, São Paulo, 2000, pp. 21-31). Machado de Assis tem também uma crônica, “Abolição e liberdade”, de 11/05/1888 que trata da questão escravo/trabalho no Brasil, exatamente como se deu na libertação dos servos na Rússia.