terça-feira, junho 28, 2011



Telepathic Netbanking
Foi difícil entender como o homem, em seu impecável uniforme negro chegou à minha porta, mas o via pelo olho mágico com o envelope na mão. Tentava imaginar como a portaria o havia deixado passar, como os vizinhos não o haviam estranhado e como, por fim, chagara ao meu apartamento sem ser interpelado com a missiva que brandia insistentemente imaginando, talvez, que eu o estivesse observando pelo lado de dentro.
A primeira resolução foi de não atendê-lo, deixando-o plantado até que a frustração o dominasse e fosse embora, mas o homem parecia saber que eu estava em casa. Além disso, era manhã de sábado e todos os que conhecem os meus hábitos saberiam que estaria em casa nessa circunstância. Ademais, pela insistência, o caso poderia ser sério, uma possível intimação, um processo ou coisa do tipo, apesar de ter certeza de não ter tomado nenhuma atitude condenável em todos esses anos – pensei em estar sendo uma nova espécie de Josef K, com seu dilema kafkiano contra uma incógnita instituição jurídica – e, por isso, resolvi abrir a porta.
O entregador não mudou de expressão. Deu-me um ‘bom dia’ mecânico e insípido e estendeu-me o envelope e uma prancheta com uma caneta para que assinasse o comprovante de recebimento. O envelope trazia algo chato e rígido em seu interior, um cartão. Curioso, perguntei pelo conteúdo.
“É um cartão de crédito do Banco X, entregue como solicitado pelo senhor. Tomamos o cuidado de entregá-lo o mais rapidamente possível para evitar que sua ansiedade em recebê-lo não manchasse a imagem de nossa instituição com uma prematura reclamação”.
“Mas eu não pedi cartão nenhum”!
“Pediu sim, senhor. E temos aqui todos os documentos que o comprovam”.
Apresentou-me alguns formulários em duplicata com meu nome, endereço, local de trabalho, telefones para contato e uma confirmação do pedido do serviço. Numa ficha definitiva, assinaturas minhas, do gerente do banco e de mais quatro testemunhas. Indignado, contestei:
“Mas eu não pedi cartão nenhum! Como conseguiu essas informações”?
“Nossa empresa conta com um inovador serviço de mensagens telepáticas, com vários operadores trabalhando em leitores que sondam as ondas cerebrais de nossos futuros clientes. O serviço é tão eficiente que lemos os desejos de nossos consumidores antes mesmo que os tenham, e antecipamos assim o incômodo de uma ligação ou uma visita para fazer a solicitação. Para abreviar também o incômodo burocrático com as negociações, preparamos todo o contrato baseado nas preferências do contratante, que só tem o trabalho de assiná-lo para começar a utilizar o serviço.
“Mas isso é um absurdo! E essas assinaturas? De onde vieram”?
Atônito, lia a minha assinatura, que se parecia fiel e convincente se comparada à praticada pelo meu punho. Surpresa maior viria ao ver, a de minha própria mãe com nome, números de documentos, telefones e endereço, sendo minha suposta fiadora. À farsa, trabalho de exímios falsários, exigi explicações, às quais o homem respondeu:
“Nossa instituição, além do grupo de leitores telepáticos, tem também uma conceituadíssima equipe de médiuns que psicografam, com base na vontade de nossos clientes, suas assinaturas para que sequer tenham o esforço de empunhar uma caneta para assinar o contrato”.
“Mas eu não quero nada disso”!
“Sim, o senhor quer e ambos sabemos disso. Foi por isso que assinou o contrato”.
Estava impassível. Boquiaberto, tentava ler o contrato, mas o vocabulário era tão técnico e específico que não reconheci as cláusulas apresentadas, os benefícios, vantagens – se é que havia algum – e os reveses. Laconicamente, questionei.
“Mas quanto é que eu vou pagar por isso”?
“Não é assunto para se tratar aqui e agora, na sua porta, à vista dos vizinhos. Faz parte de nossa política de privacidade não discutir assuntos de caráter financeiro e comercial onde haja ouvidos alheios. Para que tenhamos respaldo de nossos clientes, temos que ser uma empresa responsável, salvaguardando-os de qualquer ameaça ao patrimônio. A equação que contabiliza o investimento nos nossos serviços, assim como taxas, impostos e juros, para as ocasiões em que o senhor atrasar o pagamento da obrigação mensal já lhe foi enviada por e-mail, é só consultar o serviço eletrônico”.
O homem, depois de tais esclarecimentos, fez uma mesura, agradeceu e se despediu desaparecendo, esfumaçando-se no ar. A procurá-lo, gritei o nome bordado no uniforme. Uma voz distante respondeu de longe, quase desaparecendo:
“Desculpe, senhor, mas não lhe posso mais dar atenção, pois meu tempo de permanência neste apartamento terminou. Meu holograma já foi direcionado para a porta do próximo cliente por meio do serviço de teletransporte da empresa, pois temos tempo limitado para cada entrega. Para maiores esclarecimentos, ligue para o SAC da empresa; o número está impresso no verso do cartão e o serviço de atendimento custa apenas π x 0,0108 + 9,36% do valor da mensalidade. Estamos felizes em tê-lo conosco. Boas compras!
A voz desapareceu no ar e, com o silêncio, considerei impossível conseguir qualquer outra informação. Entrei no apartamento com o envelope na mão, cerrando a porta atrás de mim. O silêncio reconfortante durou apenas alguns segundos, pois, num átimo, a campainha voltou a tocar. Na soleira, um homem de uniforme negro segurava uma prancheta com uma caneta e brandia, na altura dos olhos, a chave de um automóvel.

João Tadeu Sena, 11/06/2011.