quinta-feira, novembro 24, 2011

terça-feira, novembro 08, 2011

Espanhistão. Interessante análise da crise econômica mundial e da bolha que nos aguarda.

terça-feira, novembro 01, 2011




O pé


Reconheceu o oficial que fazia a guarda de seus bens quando abriu a porta. A novidade era que vinha acompanhado, além dos dois policiais de costume, de dois homens em jalecos brancos, cada um com uma maleta. O primeiro, com um bigodinho um tanto mal-aparado, parecia nervoso, os tiques pronunciados nos dedos e nas sobrancelhas, enquanto o segundo aparentava um tédio quotidiano e impaciente, daqueles que rezam para que o dia termine logo para poder voltar para casa. Decerto, detestava o serviço.
A visita era incógnita. O banco, a quem devia, como milhões nos dias atuais, já lhe tomara tudo. A princípio, fora o carro, um velho automóvel que pouco se prestava às necessidades básicas, mas que valia uns tostões. Adiante, foi tomada a casa, que não era das maiores, mas lhe servia de moradia. Com o despejo, teve de mudar-se para a casa dos pais que, de jeito nenhum, se parecia mais com um lar ou coisa que o valesse. Assim, foram-lhe sendo apreendidos os bens menores, a televisão, o aparelho de som, o computador; até a cama, fazendo-o dormir no num colchão ao rês do chão no quartinho que ocupava na morada dos progenitores, tudo em nome de dívidas que, em vez de diminuírem com as apreensões judiciais, apenas aumentavam, com a autoridade bancária alegando que estavam sendo simples amortizações de juros; a instituição alegava que estava guardando os bens até que a dívida fosse saldada em dias financeiramente melhores.
Ao pasmo, o gerente anunciou cordialmente:
“Boa tarde. Viemos recolher o que cabe ao banco I. para diminuir sua dívida”.
Apresentava documentos que comprovavam a dívida, todos assinados por autoridades respaldando a ação judicial e autorizando o agente a recolher os bens indicados. Ante o sorriso nervoso, o homem desobstruiu o caminho para que vissem que, no tugúrio atulhado, restavam apenas o velho e murcho colchão e duas pilhas de roupa, uma de sujas, aglomeradas num canto, e outra de limpas, dobradas noutro.
“Viemos recolher seu pé esquerdo para amortização dos juros da dívida X-96512”.
Vinham recolher-lhe o pé esquerdo como forma de minimizar o prejuízo. Boquiaberto, o homem levantou as mãos em sinal de “não”, mas a força policial o instava a não resistir brandindo cacetetes. Tentou argumentar, mas nada demovia o grupo de realizar seu trabalho. Diante das negativas do devedor, o anestesista, tenso, interveio:
“Vamos fazer isso logo. Será melhor, tanto para nós como para o senhor”.
Ao que o cirurgião, o entediado responsável pela operação, emendou:
“Ainda temos nove operações como essa para fazer. Considere. Estamos apenas realizando nosso trabalho. Temos também mulher e filhos esperando em casa. É apenas mais um serviço, e não o mais complicado. Não sabe como é difícil extrair um rim...”
diante das afirmações, o homem leu os documentos apresentados. O agente atalhou que seu pé passaria bem, em moderníssimos compartimentos criogênicos até que a dívida fosse saldada. O homem argumentou:
“Mas se não consigo emprego nem com os dois pés, quem dirá com um!”
Ao que o agente redargüiu:
“Senhor, não podemos nos responsabilizar pelos seus fracassos, tanto financeiros quanto educacionais. E como disse o doutor V. aqui, estamos apenas realizando nosso trabalho, não é culpa nossa que o senhor deva perder o pé, mas de suas dívidas para com a instituição”.
O agente tomou o contrato dizendo:
“A instituição tem um programa de seguro de inclusão social que cobre todas as despesas da remoção do pé”.
“Mas se não consigo emprego nem são, quem dirá aleijado?”
Ao que o agente respondeu:
“No parágrafo quarto do presente contrato encontra-se o termo de responsabilidade social de nossa empresa, que garante ao senhor um emprego em nosso banco para que possa amortizar a dívida a ponto de ter seu pé de volta. Com os descontos debitados de seu salário, poderá produzir alguma renda capaz de reaver o órgão perdido. É só ler e calcular o montante necessário para ter o pé devolvido”.
O homem leu, indignado, a cláusula. Com uma calculadora, fez as contas de quanto tempo demoraria para ter o pé de volta, descontados os impostos e taxas praticados pelo banco: quinze anos!
“Não é justo!”
“Sim, existem precedentes jurídicos. Quando um indivíduo vai preso por dívidas, tem todo o seu corpo alienado do convívio social por conta disso. Nós estamos apenas pedindo uma parte ínfima do seu corpo, menos de cinco por cento”.
“Mas como vou me sustentar sem o meu pé?”
“Fique tranqüilo. A empresa já pensou em tudo isso. Ao contrário do que possa parecer, preocupamo-nos, principalmente, com a sua felicidade, com a sua liberdade”.
O anestesista, impaciente, aplicou-lhe um sedativo no braço esquerdo. Por mais que tentasse argumentar, os policiais o agarraram brandindo termos de reintegração de posse enquanto as palavras saíam-lhe pastosas, dementes com o efeito do medicamento. Desfaleceu, desacordado.
Quando acordou, no chão imundo em que dormira, procurou observar minuciosamente o quarto vazio. No canto da parede, entre uma pilha de roupas e outra, havia um par de muletas. Cortesia do banco.

João Tadeu Sena, 30/09/2011.