quarta-feira, abril 06, 2011




Um churrasco
Nosso domingo de sol foi brindado com um magnífico churrasco organizado pelos colegas da faculdade. Animados, alugaram um sítio na cidade vizinha e organizaram, como uma grande extensão do botequim diário da porta da universidade, a aprazível festa. Interessado, peguei uma carona logo de manhã para o recanto campestre com um colega de sala que estava estendendo a balada da noite anterior.
Chegando ao local da festa tudo já estava preparado, com a churrasqueira acesa e muita gente na piscina, latas de cerveja vazias por todos os lados. Os organizadores, que passaram a noite no local, já adiantavam o clima de festa. O fumo da carne tomava conta do lugar, invadindo, com seu odor característico, as narinas desavisadas.
Os carros começavam a chegar ocupando o gramado; os cavalos e camelos dos outros estudantes esforçavam-se para, entre os pneus, arrancar tufos de erva para reabastecer o reservatório de energia para a viagem de volta com o dono no lombo e, como sempre acontecia, mais um ou dois companheiros embriagados impossibilitados de retornar sozinhos, cambaleando sobre as corcovas. Em pouco tempo, haveria muita gente assim.
A reunião seguia alegremente com a piscina lotada, desalojando a saparia que observava tristemente à beira com os olhos arregalados; gente cantando pela casa e a fumaça e a cerveja rolando soltas, até que um colega já coberto de fuligem e gordura preta – assemelhava-se a um ferreiro europeu do medievo, com manchas de carvão pelo corpo e os pelos do braço e os cabelos untados da graxa negra que saía da grelha – e com um avental bordado I S2 Mambo veio para dar a triste notícia: a carne do churrasco havia acabado. A pequena chácara era suficientemente distante para que qualquer um de nós saísse para buscar mais antes que o domingo terminasse.
“Não tem problema”, disse meu amigo motorista, “eu resolvo isso”. Abriu prontamente o porta-malas do automóvel e, quando esperávamos todos que de lá sairia uma peça de picanha ou de alcatra, nosso camarada apresentou um enorme cutelo de açougueiro. Arregaçou a manga do braço direito, membro que foi anestesiado para que fosse feita a primeira incisão. Cortaram-lhe a pele num corte reto e circular em volta do bíceps, logo onde se junta ao ombro. Com uma machadinha, talharam os ossos da base do braço e um nervo amarelo escuro e grosso apareceu, sendo, a seguir, cortado á faca. O braço desmembrado teve mais um corte na parte interna, de onde se podia ver, entre o sangue que escorria, a carne vermelha de meu amigo, com suas fibras rubras e a gordura esbranquiçada. Os amigos seguraram a pele e foram puxando pelas pontas até desgrudarem-na totalmente do músculo, deixando-o nu, uma peça idêntica às que vemos penduradas nas vitrinas dos açougues – a epiderme foi esticada e pendurada na parede, um belo enfeite com lidas tatuagens. “Salve, a carne voltou ao cardápio!”, comemoravam nossos colegas estudantes. Desossaram-no, pois os ossos atrapalhariam na mastigação, e, aos cortes, vimos as pontas brancas brotando da manta vermelha. O mesmo foi feito com o antebraço, e logo tínhamos três fabulosos bifes, dois do bíceps – um mais gorduroso da parte interna e outro da parte externa que, por ser mais robusto, seria servido mal-passado – e outro do antebraço que, mais fino e mais magro, sairia mais queimadinho. As peças foram salgadas e colocadas na churrasqueira. Alguns colegas já salivavam com o crepitar da gordura sobre o carvão em brasa. As mãos, duras e ossudas, foram dispensadas e servidas aos cães, mas os dedos foram também colocados no fogo para servir de tira-gosto.
As pessoas deleitavam-se com aquela carne tenra, mastigavam o braço do meu amigo com júbilo e elogiavam o churrasqueiro pela preparação da carne. Alguns comiam com pão e vinagrete, o que acentuava o sabor do membro do colega, outros, com bastante pimenta. A galera da cerveja chupava os ossinhos dos dedos como se chupam as patas dos caranguejos à beira da praia. Observava a cena de canibalismo horrorizado, mas as pessoas se mostravam satisfatoriamente felizes com a reposição do alimento, que trituravam alegremente com os dentes.
Ao cair da noite, diante da impossibilidade do meu amigo ao volante, tivemos que pegar uma carona no camelo de um colega. O animal cambaleava pela estrada diante do peso extra. Nosso estudante tinha um torniquete na base do membro mutilado, e a camisa tinha várias manchas rubro-cobres de sangue seco. Conversava alegremente com o condutor do animal como se nada tivesse acontecido enquanto vacilava sobre a corcova na impossibilidade de segurar com as duas mãos as rédeas do animal que nos carregava. Elogiava o camarada por ter comprado um camelo e não um dromedário, que dificultaria o transporte do trio.
Envergonhado, resolvi tocar no assunto:
“Não se arrepende de ter perdido o braço?”
“Não. As pessoas estavam com fome e eu não estava usando o braço no momento. Ademais, eu ainda tenho o outro. Tomei o cuidado de dar o braço direito, pois sou canhoto.”
“Mas eles cortaram, arrancaram a pele, desossaram, cortaram em bifes, salgaram, assaram e comeram o TEU braço!”
“Ah, não importa. Fazem o mesmo com os bois. A diferença é que não tem anestesia, e, com eles, usam o corpo todo.”

João Tadeu Sena, 06/04/2011.

2 comentários:

Bruno Pinheiro disse...

Belíssimo texto, João Tadeu! Obrigado por compartilhar conosco essa excelente reflexão!!!

Abs!
Bruno
http://questionandooespecismo.blogspot.com
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Rafael Garcia disse...

Dizei, ó nobre confrade!
Conheceis vós a canção da qual ora envio o endereço? Parece-me endossar vosso nobre texto.

http://letras.terra.com.br/francis-cabrel/6497/