sábado, abril 02, 2011



O metrô

Estação Anhangabaú, hora do rush, plataformas lotadas, trens lotados; mais gente chegando e contaminando a estação já apinhada com os germes do exterior, tornando o ar mais pesado e o ambiente, de furtivas luzes brancas, sombras negras e maligna penumbra, onde o esperado ruído agudo e metálico anuncia o trovão ensurdecedor do comboio chegando, trazendo mais gente e bactérias aéreas enclausuradas na lata hermeticamente fechada.
As portas, ao parar do trem, abrem-se num clangor estrepitoso; camisas grudadas de suor, pouco espaço para tanta gente, mas que, mesmo diante da impossibilidade de se abarrotar mais o vagão, vão preenchendo cada canto, cada espaço, cada milímetro entre corpos e ferros, roupas e transpiração, bancos e pessoas enferrujadas.
O clangor repete-se ao som da campainha. Novamente, o ar irrespirável, germes concentrados.
O trem entra em movimento para a escuridão do túnel e ganha velocidade. A próxima estação não é anunciada; acende-se a Sé à frente e vai passando, vai passando... e passa! As pessoas olham apavoradas o novo túnel que enegrece as janelas, alguns felizes por abreviar-se o tempo de viagem, outros indignados por planejarem a baldeação justamente naquele entroncamento, a maioria, indiferente.
O céu desenha-se na saída do túnel às alturas. Estranhamente, a estação Pedro II, sobre o opaco rio Tamanduateí também passa incólume. Mais alguns olhos indiferentes tingem-se de um fogo furioso, e mais ainda quando o trem passa pelo Brás.
O comboio vai ganhando velocidade, os out-doors do lado de fora tornam-se irreconhecíveis, os viadutos transformam-se em linhas difusas, desce-se das alturas ao rês do chão passando em fulgores laranjas Bresser, Belém e a grandiosa estação Tatuapé, frustrando a conexão com a CPTM. Os muros e prédios adjacentes viram borrões trosgrados, a lua, no céu escuro, um gigantesco planeta, enquanto passam as luzes de Carrão, Penha e Guilhermina-Esperança. Patriarca e Arthur Alvim tingem os olhares de estrelas de fogo, alguns desesperados pela velocidade, outros pela perda do destino, alguns se conformando, outros, simplesmente indiferentes. Corinthians-Itaquera catapulta-nos ao espaço, na falta de mais trilhos por onde rodar, enquanto o trem continua a percorrer seu caminho por paisagens inusitadas, manchas coloridas se fundem e criam imagens catastróficas, caóticas, voluptuosas. Uma tempestade imensa se forma e desaba do lado de fora; as pessoas gritam, estendem as mãos aos céus, ajoelham-se pedindo perdão enquanto a composição passa por novas estações desconhecidas, uma lilás, a seguinte gótica, a terceira subterrânea, sob as bases da terra onde se vêem diamantes, ametistas, opalas, golfinhos, baleias e o mar, o sol poente, os planetas, as tempestades anelantes e espirais da atmosfera de Júpiter, os anéis de Saturno...
É nesse momento que a última senhora à minha esquerda, na poltrona cinza destinada aos idosos, e a única ainda completamente alheia à insólita viagem, me olha diretamente nos olhos como se naquele olhar houvesse um punhal desembainhado, pronto para sangrar um oponente até a morte, fazendo a pergunta fatal que lhe surge dos lábios ressequidos:
“Senhor, já passou da hora da novela?”

João Tadeu Sena, 27/03/2005.

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