"O coração delator", Edgar Alan Poe.
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sábado, janeiro 21, 2012
segunda-feira, abril 04, 2011

A eternidade
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo o salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão.
As vitrines, Chico Buarque.
Impossível precisar por que as pessoas se fotografam tanto. Mais valeria se se fotografassem os animais agora tão raros em vez dos humanos que por aí abundam e, ao contrário dos bichos, nada têm de original. Talvez seja nostalgia de retrato, pois, antes da fotografia, quando se retratava a efígie humana a pincel e tinta, até os indivíduos mais esdrúxulos ficavam interessantes nas telas dos mestres, e não são poucos os exemplos que o comprovam, as gravuras estão aí em museus e galerias como esta para comprovar a afirmação. Ademais, na imaginação dos artistas há sempre um pouco mais a oferecer que o caráter vulgar do registro da foto; os sorrisos são mais radiantes, os olhares mais altivos e serenos e as cores da face mais vivas que as expressões pouco interessantes e previsíveis da película.
Muitas vezes surgem paixões inesperadas por indivíduos que sequer existiram na realidade, mas que surgiram da mente de gente de inteligência superior; isso, não raro, acontece. A imutabilidade do aspecto físico, o não envelhecimento e a beleza retratada na pintura encantam, apaixonam, conquistam, seduzem. Desde que saí das mãos do meu criador, as paredes mudaram, trocaram de cor e textura, descascaram-se por descuido e foram restauradas, mas eu permaneço imutável. E isso já há várias dezenas de anos.
Lembro-me da primeira vez que ela apareceu na galeria. Era ainda estudante, bastante nova, e estava acompanhando uma excursão do colégio onde estudava. Em meio à explicação do guia a respeito da biografia do meu modelo – desaparecido há anos! – nossos olhares se cruzaram e foi como se uma repentina supernova acendesse-se no céu noturno, ofuscando o brilho das estrelas comuns. O uniforme escolar não prejudicava o brilho daqueles olhos e cabelos, ambos castanhos, ou a bela face arredondada. Um último olhar, de relance, selou a visita, os alunos dirigindo-se à próxima gravura numa despedida triste.
Voltou, e não poucas vezes. Conheci-lhe a família numa visita conjunta; o pai, impaciente e de pouca sensibilidade artística, mas logo percebi que herdara os olhos da mãe, que queria sair logo dali para ver obras contemporâneas. Retiraram-se, mas louvaram o interesse precoce da filha pelos clássicos.
E ela retornou muitas outras vezes com amigos, professores, gente estranha; a vi crescer, estudar, reparei em suas mudanças de aparência, novos cortes e penteados, roupas diferenciadas, foi adquirindo trejeitos e mudou de expressão e perfume várias vezes. Percebi que nos quentes dias de verão era mais lépida que nos frios do inverno, quando era mais contida e introspectiva, quase tímida e triste, mas com o mesmo fulgor no olhar que vira na primeira vez. Ficava horas fitando-me e, quando se convencia de que de mim não viria qualquer gesto ou palavra, retirava-se frustrada do salão, sempre com aquele furtivo olhar final.
Vi-lhe os cabelos perderem a tonalidade, tornando-se de um branco que ela por um tempo insistiu em tingir da cor original, tentando, em vão, preservar-lhes a juventude, a pele do rosto perder o viço e tornar-se enrugada e as carnes do corpo perder a firmeza e a volúpia de outrora, mas os olhos sempre emitiam o mesmo brilho, mesmo agora intermediados por lentes de óculos cada vez mais espessas, mais grossas.
Com o tempo, tornou-se sua companheira inseparável uma bela bengala de madeira envernizada, recurso imprescindível dos que mancam, mas toda a sua decrepitude era compensada pelo olhar, a expressão ígnea que a acompanhou por todo esse tempo, inclusive, em sua última visita, numa cadeira de rodas e com um xale vermelho sobre as pernas. E eu, como da primeira vez, envergonhado pelas roupas antiquadas, pela severidade do olhar, pelo visual fora de moda. Uma lágrima desceu-lhe dos olhos prenunciando a despedida.
Depois daquela visita, a galeria tornou-se um lugar mais frio e tristonho, e não procurei olhar mais nenhum visitante nos olhos.
João Tadeu Sena, 04/04/2011.
sábado, abril 02, 2011

O metrô
Estação Anhangabaú, hora do rush, plataformas lotadas, trens lotados; mais gente chegando e contaminando a estação já apinhada com os germes do exterior, tornando o ar mais pesado e o ambiente, de furtivas luzes brancas, sombras negras e maligna penumbra, onde o esperado ruído agudo e metálico anuncia o trovão ensurdecedor do comboio chegando, trazendo mais gente e bactérias aéreas enclausuradas na lata hermeticamente fechada.
As portas, ao parar do trem, abrem-se num clangor estrepitoso; camisas grudadas de suor, pouco espaço para tanta gente, mas que, mesmo diante da impossibilidade de se abarrotar mais o vagão, vão preenchendo cada canto, cada espaço, cada milímetro entre corpos e ferros, roupas e transpiração, bancos e pessoas enferrujadas.
O clangor repete-se ao som da campainha. Novamente, o ar irrespirável, germes concentrados.
O trem entra em movimento para a escuridão do túnel e ganha velocidade. A próxima estação não é anunciada; acende-se a Sé à frente e vai passando, vai passando... e passa! As pessoas olham apavoradas o novo túnel que enegrece as janelas, alguns felizes por abreviar-se o tempo de viagem, outros indignados por planejarem a baldeação justamente naquele entroncamento, a maioria, indiferente.
O céu desenha-se na saída do túnel às alturas. Estranhamente, a estação Pedro II, sobre o opaco rio Tamanduateí também passa incólume. Mais alguns olhos indiferentes tingem-se de um fogo furioso, e mais ainda quando o trem passa pelo Brás.
O comboio vai ganhando velocidade, os out-doors do lado de fora tornam-se irreconhecíveis, os viadutos transformam-se em linhas difusas, desce-se das alturas ao rês do chão passando em fulgores laranjas Bresser, Belém e a grandiosa estação Tatuapé, frustrando a conexão com a CPTM. Os muros e prédios adjacentes viram borrões trosgrados, a lua, no céu escuro, um gigantesco planeta, enquanto passam as luzes de Carrão, Penha e Guilhermina-Esperança. Patriarca e Arthur Alvim tingem os olhares de estrelas de fogo, alguns desesperados pela velocidade, outros pela perda do destino, alguns se conformando, outros, simplesmente indiferentes. Corinthians-Itaquera catapulta-nos ao espaço, na falta de mais trilhos por onde rodar, enquanto o trem continua a percorrer seu caminho por paisagens inusitadas, manchas coloridas se fundem e criam imagens catastróficas, caóticas, voluptuosas. Uma tempestade imensa se forma e desaba do lado de fora; as pessoas gritam, estendem as mãos aos céus, ajoelham-se pedindo perdão enquanto a composição passa por novas estações desconhecidas, uma lilás, a seguinte gótica, a terceira subterrânea, sob as bases da terra onde se vêem diamantes, ametistas, opalas, golfinhos, baleias e o mar, o sol poente, os planetas, as tempestades anelantes e espirais da atmosfera de Júpiter, os anéis de Saturno...
É nesse momento que a última senhora à minha esquerda, na poltrona cinza destinada aos idosos, e a única ainda completamente alheia à insólita viagem, me olha diretamente nos olhos como se naquele olhar houvesse um punhal desembainhado, pronto para sangrar um oponente até a morte, fazendo a pergunta fatal que lhe surge dos lábios ressequidos:
“Senhor, já passou da hora da novela?”
João Tadeu Sena, 27/03/2005.

O professor
E eis que, naquela manhã, Walter resolveu apresentar um fabuloso espetáculo aos seus alunos. Professor de História, chegou mais cedo a sua unidade, retirou uma caixa de madeira de considerável tamanho de seu carro – os vários furos nas laterais denunciavam a carga viva – e, com algum esforço levou a caixa adesivada de “CUIDADO! FRÁGIL” para dentro da escola.
Os alunos, naquela manhã, observavam atônitos o volume recoberto por um pano branco na frente da sala entre os comentários do futebol da noite anterior e os namoricos de corredor até que o professor, de súbito, descobriu a caixa e revelou aos alunos seu misterioso conteúdo: a própria Loba romana, ainda com Rômulo e Remo pendentes de suas tetas.
Deslumbrados, os alunos apontavam a cena bizarra; duas crianças humanas fedendo a almíscar fartando-se do leite de um animal selvagem, saciando-se do líquido lácteo que escorria aos borbotões pelos cantos de suas bocas, e, gorgolejando, deglutiam o rico nutriente. Ambos escandalizavam pela nudez e pelas unhas sujas e crescidas dos pés e das mãos. Os cabelos desgrenhados e esvoaçantes traziam folhas secas entre os fios, e o corpo nu estava enlameado pelo barro de uma distante floresta do Lácio. Os petizes, quando saciados, grunhiam satisfeitos imitando o repouso de sua ama silvestre. O professor recobriu a exposição para salvaguardar o trio que ressonava entre as palhas dispostas no assoalho da cela para passar à explanação. Explicou toda a história do abandono das crianças na floresta e os problemas políticos na sucessão de Alba Longa e como, por conseguinte, a capital do futuro Império herdaria o nome de um dos guris, que o docente, ao levantar o pano suavemente para não incomodar, apontou satisfeito com o dedo.
Na mesma tarde, o telefone da escola começou a tocar. O primeiro pai reclamava da nudez dos meninos, alegando atentado violento ao pudor e prometendo descobrir toda a rede de pedofilia e exploração de menores encabeçada pelo professor. Depois, outros ligaram. Um advogado progenitor, aos brados, reclamava-se representantes dos meninos e acusava-o de corrupção e exploração de menores, de aproveitar-se do trabalho infantil e de cárcere privado, alardeando a gorda indenização que receberia, ele e seus clientes ao final do processo. Um outro, evangélico homicida, acusava o funcionário de atentar contra a moral e os bons costumes, afirmava que receberia vultoso castigo por heresia por ensinar mitos pagãos a crianças inocentes.
Muitos foram direto à Ouvidoria Pública, e, nos dias seguintes, uma enxurrada de documentos protocolados inundaram a mesa do diretor exigindo uma ação disciplinar para com seu subordinado, fazendo com que toda a equipe administrativa se mobilizasse durante as semanas seguintes para responder a tantas reclamações e denúncias.
Porém, nada aplacava a fúria da comunidade. Os pais, empunhando forcados e foices, marchavam aos gritos pelo bairro e, por fim, cercaram o prédio. A manifestação chamou a atenção da imprensa, que, prontamente, compareceu para cumprir seu dever. Os apresentadores vociferavam enfáticos, e sua euforia contaminava a população.
Para evitar a hecatombe, o diretor foi obrigado a entregar Walter à fúria daquele braço secular da opinião pública. Vexado, porém polidamente, o homem falou com calma e humildade à turba ensandecida, procurando desculpar-se e remediar a situação, e colocando-se à disposição da municipalidade, da Associação de pais e Mestres, ao Conselho Tutelar, ao Conselho Regional de Enfermagem, à Ordem dos Advogados e à Liga das Senhoras Católicas para maiores esclarecimentos e, para dar veracidade ao depoimento, afirmou que estava revendo todo o seu planejamento e o projeto pedagógico. Enfatizou, inclusive, que já havia desistido de apresentar o King-Kong à sexta série na próxima aula.
João Tadeu Sena, 31/03/2011
domingo, outubro 31, 2010
O insone
A vida não me deixa dormir. As órbitas fundas e azuladas no espelho, a face dura, ossuda e encovada de tanto tempo e os olhos óleo-avermelhados, remelentos e distantes, com sua bacia hidrográfica de pequenos regaços rubros ao redor da íris fosca têm acompanhado o crescer da barba, mícron por mícron no reflexo das noites insones; as sobrancelhas espessas, hirsutas e ardentes e a fronte cansada e dolorosa como se um balé paquidérmico dançasse da hipófise ao córtex, à nuca, ao giro de Krebs e ao de Broca, e como se os fogos de ano novo numa pirotecnia insana me acompanhassem madrugada após madrugada até as luzes da aurora e o sol queimando as retinas secas e enrubrescidas, colocando um halo cor de batata frita fria e cerveja quente rodeando os buracos-negros da córnea que com sua densidade exorbitante e sua gravitação demoníaca não deixam, sequer, escapar uma lúmen, um raio de luz, vendo, observando, enxergando ininterruptamente; a vista fatigada de tanto ver. Com isso, as cores luminosas assumem uma tonalidade poeirenta, fumacenta, obscuramente amarronzada, e a beleza fenece. Talvez eu tenha vivido demais ou dormido de menos, mas é certo que há um descompasso entre as duas atividades. Tenho vivido ininterruptamente há quinze anos, e não vejo término neste sofrimento.
O martírio estende-se pelo resto do corpo: os músculos doem a cada movimento carregados de letargia como se estivessem todos envenenados, mortos. O esforço para levantar uma perna numa caminhada é sobre-humano, sente-se cada fibra muscular gritando nos membros ressequidos, e cada caminhada parece os espasmos finais de um corpo agonizante tentando sentir seus últimos movimentos desesperados e latejantes, entregam-se à imobilidade, são obscurecidos e enregelados pelo rigor mortis. As fibras musculares são um cordame ressequido e poeirento retesado por calandras de aço, e rangem ruidosamente, os ossos estalam como o madeiramento de um navio velho abandonado à deriva; o corpo soa como uma velha porta de madeira bolorenta de enferrujadas dobradiças que se abre ruidosamente em seu ranger.
A insônia tem dessas metáforas grandiloqüentes, pois os que sofrem do mal, na ausência do quê fazer nas longas noites de outubro a outubro. Assim são as noites, negras e nevoentas, assim são as auroras rachadas e tormentosas. É muito tempo para um homem não dormir, mas eu não durmo.
Caminha-se, mas porque existe rua, existe calçada. Os músculos reagem dolorosamente, os tendões doem...
Repentinamente, uma região no centro, no âmago do crânio estala, e o banco frio do ponto de ônibus, metálico e repugnante, torna-se o local de descanso do corpo desgraçadamente seco pela interminável insônia. Os ossos, em contato com as estruturas gélidas e arestosas do banco gelado conseguem um raro prazer, distante e desconhecido e ignoram o fato de as formas terem sido produzidas para receber glúteos, não costas e braços puerilmente postos sob a cabeça, formando um rudimentar travesseiro. A cabeça descansa sobre as mãos juntas, e o desfalecimento toma conta do encéfalo seco e murcho dentro da abóboda óssea. As pálpebras cerram-se, e o contato dos olhos com a mucosa é arenoso, como se permeado por uma miríade de pirâmides minúsculas e ressequidas a rolarem pela superfície frágil do tecido ocular. Num momento, com o rolar das pálpebras, tudo se torna escuro e a consciência vai-se esvaindo lentamente. Finalmente, depois de tantos anos, o homem da areia visita-me. Desculpa-se pela demora e pelo olvido, mas realiza seu trabalho magnificamente. É o sono.
Lentamente, formas obscuras e nevoentas aparecem. Vejo-me deitado num sujo e frio banco de ponto de ônibus, os que esperam o coletivo afastam-se com asco, mas sorrio quase com desespero. O barulho das conversas e dos automóveis é quase imperceptível diante da situação, pois os olhos rolam de um lado para o outro num sonho que destoa da turbulência circundante, com seus capítulos de novela perdidos e seus motores possantes que são compensados pelas buzinas, já que a velocidade do trânsito é desproporcional à indicada nos velocímetros dos carros. Observo-me dormindo.
Lentamente, formas obscuras e nevoentas aparecem. Vejo-me deitado num sujo e frio banco de ponto de ônibus; os que esperam o coletivo afastam-se com asco, mas sorrio quase com desespero. O barulho das conversas e dos automóveis é quase imperceptível diante da situação, pois os olhos rolam de um lado para outro num sonho que destoa da turbulência circundante, com seus capítulos de novela perdidos e seus motores possantes que são compensados sonoramente pelas buzinas, já que a velocidade do trânsito é desproporcional à indicada nos velocímetros dos carros. Observo-me dormindo.
É impossível resistir ao impulso da curiosidade que, apesar do cansaço de anos, impele-me ao desejo de constatar se estou, realmente, depois de tantos anos, dormindo. Desperto, neste momento, alavancado por este sentimento e observo-me, como uma criança, com lágrimas de felicidade, para ver-me novamente num sujo e frio banco de ponto de ônibus; os que esperam o coletivo afastando-se com asco, mas sorrio quase com desespero. O barulho das conversas e dos automóveis é quase imperceptível diante da situação, pois os olhos rolam de um lado para o outro num sonho que destoa da turbulência circundante, com seus capítulos de novela perdidos e motores possantes que são compensados sonoramente pelas buzinas, já que a velocidade do trânsito é desproporcional à indicada nos velocímetros dos carros. Observo-me dormindo.
Tadeu Sena, 24/04/09.
A vida não me deixa dormir. As órbitas fundas e azuladas no espelho, a face dura, ossuda e encovada de tanto tempo e os olhos óleo-avermelhados, remelentos e distantes, com sua bacia hidrográfica de pequenos regaços rubros ao redor da íris fosca têm acompanhado o crescer da barba, mícron por mícron no reflexo das noites insones; as sobrancelhas espessas, hirsutas e ardentes e a fronte cansada e dolorosa como se um balé paquidérmico dançasse da hipófise ao córtex, à nuca, ao giro de Krebs e ao de Broca, e como se os fogos de ano novo numa pirotecnia insana me acompanhassem madrugada após madrugada até as luzes da aurora e o sol queimando as retinas secas e enrubrescidas, colocando um halo cor de batata frita fria e cerveja quente rodeando os buracos-negros da córnea que com sua densidade exorbitante e sua gravitação demoníaca não deixam, sequer, escapar uma lúmen, um raio de luz, vendo, observando, enxergando ininterruptamente; a vista fatigada de tanto ver. Com isso, as cores luminosas assumem uma tonalidade poeirenta, fumacenta, obscuramente amarronzada, e a beleza fenece. Talvez eu tenha vivido demais ou dormido de menos, mas é certo que há um descompasso entre as duas atividades. Tenho vivido ininterruptamente há quinze anos, e não vejo término neste sofrimento.
O martírio estende-se pelo resto do corpo: os músculos doem a cada movimento carregados de letargia como se estivessem todos envenenados, mortos. O esforço para levantar uma perna numa caminhada é sobre-humano, sente-se cada fibra muscular gritando nos membros ressequidos, e cada caminhada parece os espasmos finais de um corpo agonizante tentando sentir seus últimos movimentos desesperados e latejantes, entregam-se à imobilidade, são obscurecidos e enregelados pelo rigor mortis. As fibras musculares são um cordame ressequido e poeirento retesado por calandras de aço, e rangem ruidosamente, os ossos estalam como o madeiramento de um navio velho abandonado à deriva; o corpo soa como uma velha porta de madeira bolorenta de enferrujadas dobradiças que se abre ruidosamente em seu ranger.
A insônia tem dessas metáforas grandiloqüentes, pois os que sofrem do mal, na ausência do quê fazer nas longas noites de outubro a outubro. Assim são as noites, negras e nevoentas, assim são as auroras rachadas e tormentosas. É muito tempo para um homem não dormir, mas eu não durmo.
Caminha-se, mas porque existe rua, existe calçada. Os músculos reagem dolorosamente, os tendões doem...
Repentinamente, uma região no centro, no âmago do crânio estala, e o banco frio do ponto de ônibus, metálico e repugnante, torna-se o local de descanso do corpo desgraçadamente seco pela interminável insônia. Os ossos, em contato com as estruturas gélidas e arestosas do banco gelado conseguem um raro prazer, distante e desconhecido e ignoram o fato de as formas terem sido produzidas para receber glúteos, não costas e braços puerilmente postos sob a cabeça, formando um rudimentar travesseiro. A cabeça descansa sobre as mãos juntas, e o desfalecimento toma conta do encéfalo seco e murcho dentro da abóboda óssea. As pálpebras cerram-se, e o contato dos olhos com a mucosa é arenoso, como se permeado por uma miríade de pirâmides minúsculas e ressequidas a rolarem pela superfície frágil do tecido ocular. Num momento, com o rolar das pálpebras, tudo se torna escuro e a consciência vai-se esvaindo lentamente. Finalmente, depois de tantos anos, o homem da areia visita-me. Desculpa-se pela demora e pelo olvido, mas realiza seu trabalho magnificamente. É o sono.
Lentamente, formas obscuras e nevoentas aparecem. Vejo-me deitado num sujo e frio banco de ponto de ônibus, os que esperam o coletivo afastam-se com asco, mas sorrio quase com desespero. O barulho das conversas e dos automóveis é quase imperceptível diante da situação, pois os olhos rolam de um lado para o outro num sonho que destoa da turbulência circundante, com seus capítulos de novela perdidos e seus motores possantes que são compensados pelas buzinas, já que a velocidade do trânsito é desproporcional à indicada nos velocímetros dos carros. Observo-me dormindo.
Lentamente, formas obscuras e nevoentas aparecem. Vejo-me deitado num sujo e frio banco de ponto de ônibus; os que esperam o coletivo afastam-se com asco, mas sorrio quase com desespero. O barulho das conversas e dos automóveis é quase imperceptível diante da situação, pois os olhos rolam de um lado para outro num sonho que destoa da turbulência circundante, com seus capítulos de novela perdidos e seus motores possantes que são compensados sonoramente pelas buzinas, já que a velocidade do trânsito é desproporcional à indicada nos velocímetros dos carros. Observo-me dormindo.
É impossível resistir ao impulso da curiosidade que, apesar do cansaço de anos, impele-me ao desejo de constatar se estou, realmente, depois de tantos anos, dormindo. Desperto, neste momento, alavancado por este sentimento e observo-me, como uma criança, com lágrimas de felicidade, para ver-me novamente num sujo e frio banco de ponto de ônibus; os que esperam o coletivo afastando-se com asco, mas sorrio quase com desespero. O barulho das conversas e dos automóveis é quase imperceptível diante da situação, pois os olhos rolam de um lado para o outro num sonho que destoa da turbulência circundante, com seus capítulos de novela perdidos e motores possantes que são compensados sonoramente pelas buzinas, já que a velocidade do trânsito é desproporcional à indicada nos velocímetros dos carros. Observo-me dormindo.
Tadeu Sena, 24/04/09.
sábado, outubro 28, 2006
O texto anterior era o primeiro conto de "O metabolismo das pedras". O próximo é o primeiro capítulo de "A volta dos que não foram". Espero que apreciem, e deixem comentários a respeito...
Cheers!
Tadeu Sena.
I
Perto de X. existe uma pequena vila chamada Toríbio que não chega aos seiscentos habitantes. A aldeia é politicamente dividida entre os municípios de X. e T. (ou seja, um empurra os problemas administrativos locais para o outro sem que nenhum dos dois se pronuncie). Em período eleitoral aparecem candidatos de ambos, com seus circos armados à caça de votos.
Toríbio é uma aldeota preponderantemente rural, com ruelas de barro empesteadas de bosta de vaca, casas pequenas, galinhas por todos os lados, porcos caminhando livremente pelas calçadas e homens picando fumo para cigarros de palha. Nos bares, em meio ao cheiro forte de cachaça recém-retirada do alambique do vilarejo (aguardente de ótima qualidade) podem-se ouvir as vozes exaltadas dos homens jogando truco.
Mas o mais curioso na vila de Toríbio é o fato de ela estar realmente – literalmente – na boca do Inferno. Embora haja quem afirme que a porta do Inferno fique em Cerbère, na fronteira franco-espanhola, em Comala, nos confins do planalto mexicano, que compositores germânicos barganhem suas almas em Palestrina, cidade que teve sua influência demoníaca atestada até por Dante, que existam embaixadores demoníacos em Guernesey, Ortach e demais ilhotas da Mancha, ou, ainda, em paragens do Oriente próximo, da Ásia distante, como Teku-Benga, nos ritos turbulentos da África Negra ou no deserto escaldante (onde o Inferno é gelado), e por valorosos que fossem tais escribas; não conheciam nossas plagas austrais, principalmente as banhadas pelos humores atlânticos. Em Toríbio localizam-se os portões infernais, e é lá que os mortos tomam a fresca quando o Inferno está muito quente (logicamente, pelas leis da termodinâmica, se a taxa de crescimento infernal é proporcionalmente menor que a de massa adentrante (consideramos aqui que as almas têm massa) no quadrado da distância – comprovando a endotermia infernal – , e atentando ao fato recorrente de que essa massa exorbita o espaço disponível, elevando os níveis de calor acima do suportável, o excedente interno precisa ser aliviado para que não explodam os reinos de belzebu. É nesse momento que as almas saem em busca de refresco (ao contrário do que se pensa, as almas podem sair). O Inferno tem cozinheiros ingleses, taxistas franceses, mulheres norte-americanas, juízes de futebol, uísque paraguaio e administradores brasileiros que possibilitam a saída. É comprovado o caso de um político local que chegou ao cargo de senador e fora expulso do Inferno por querer mandar mais que o próprio Diabo. Oxalá fosse possível elaborar-se todo um tomo tratando apenas desses aspectos, mas, como não convém a preâmbulo demorar-se (e este já se adianta ao enfado...), voltemos a Toríbio e à nossa história.
Cheers!
Tadeu Sena.
I
Perto de X. existe uma pequena vila chamada Toríbio que não chega aos seiscentos habitantes. A aldeia é politicamente dividida entre os municípios de X. e T. (ou seja, um empurra os problemas administrativos locais para o outro sem que nenhum dos dois se pronuncie). Em período eleitoral aparecem candidatos de ambos, com seus circos armados à caça de votos.
Toríbio é uma aldeota preponderantemente rural, com ruelas de barro empesteadas de bosta de vaca, casas pequenas, galinhas por todos os lados, porcos caminhando livremente pelas calçadas e homens picando fumo para cigarros de palha. Nos bares, em meio ao cheiro forte de cachaça recém-retirada do alambique do vilarejo (aguardente de ótima qualidade) podem-se ouvir as vozes exaltadas dos homens jogando truco.
Mas o mais curioso na vila de Toríbio é o fato de ela estar realmente – literalmente – na boca do Inferno. Embora haja quem afirme que a porta do Inferno fique em Cerbère, na fronteira franco-espanhola, em Comala, nos confins do planalto mexicano, que compositores germânicos barganhem suas almas em Palestrina, cidade que teve sua influência demoníaca atestada até por Dante, que existam embaixadores demoníacos em Guernesey, Ortach e demais ilhotas da Mancha, ou, ainda, em paragens do Oriente próximo, da Ásia distante, como Teku-Benga, nos ritos turbulentos da África Negra ou no deserto escaldante (onde o Inferno é gelado), e por valorosos que fossem tais escribas; não conheciam nossas plagas austrais, principalmente as banhadas pelos humores atlânticos. Em Toríbio localizam-se os portões infernais, e é lá que os mortos tomam a fresca quando o Inferno está muito quente (logicamente, pelas leis da termodinâmica, se a taxa de crescimento infernal é proporcionalmente menor que a de massa adentrante (consideramos aqui que as almas têm massa) no quadrado da distância – comprovando a endotermia infernal – , e atentando ao fato recorrente de que essa massa exorbita o espaço disponível, elevando os níveis de calor acima do suportável, o excedente interno precisa ser aliviado para que não explodam os reinos de belzebu. É nesse momento que as almas saem em busca de refresco (ao contrário do que se pensa, as almas podem sair). O Inferno tem cozinheiros ingleses, taxistas franceses, mulheres norte-americanas, juízes de futebol, uísque paraguaio e administradores brasileiros que possibilitam a saída. É comprovado o caso de um político local que chegou ao cargo de senador e fora expulso do Inferno por querer mandar mais que o próprio Diabo. Oxalá fosse possível elaborar-se todo um tomo tratando apenas desses aspectos, mas, como não convém a preâmbulo demorar-se (e este já se adianta ao enfado...), voltemos a Toríbio e à nossa história.
terça-feira, outubro 24, 2006
É, vamos escrever...
Isso aqui vai servir para trazer à tona parte do lixo que eu escrevo, tanto pessoalmente quanto literariamente. Não leve nada a sério, pois eu também não levo. Mas estamos começando (eu e quem? é possível que ninguém leia isto...), e todo começo é assim... Ontem, depois do debate, descobri que existe gente mais medíocre que eu, e o pior, é candidato a presidente!!!! E eu que não sou nem vereador ainda! (hahahahaha!!!!!!) Agora sei porque o chamam "picolé de chuchu!"
Mas voltando a falar disso aqui, espero que vocês, visitantes, (se há algum) apreciem o que aqui existe. Para comemorar esta estréia (se é que ela é digna de comemoração...), vai um texto já antigo e conhecido da maioria dos meus amigos. Não tente copiar ou plagiar, já esta registrado (rs!). Pode ser ruim, mas eu tenho muito ciúme do que faço.
Cheers!!!!
A Inundação
Subia eu a rua Padre Celestino numa ensolarada tarde de segunda-feira. O sol queimava a pele de meu rosto e meus braços, fazendo-me transpirar sobremaneira, conferindo-me um aspecto pegajoso e repugnante, mas, com o mesmo efeito, dando um ar de atração e agradável volúpia à pequena figura de cabelos negros a minha frente, o que me faz concluir que a mediocridade da vida é pouco mais suportável do que imaginava momentos antes. Vou subindo a rua hipnotizado pela figura de pele morena que caminha pouco acima, em direção a uma das principais avenidas da cidade.
A poluição lançada por carros e chaminés de indústrias, aliada à tarde de calor intenso, faz com que o próprio ar se torne sujo, criando uma atmosfera pegajosa e dando um aspecto gorduroso e resinoso às pessoas e aos prédios, em meio ao asfalto quente que, em partes, vai derretendo. Afora isso, dou-me conta de que, por baixo da pesada calça jeans e da camisa (que não deixa de ser grossa para um dia de calor insuportável como este), estou completamente banhado em suor, o que me faz perceber que mesmo se pudesse ter qualquer contato com a pequena morena à minha frente, ela acharia meu aspecto repugnante, e que o simples fato de poder observa-la caminhando displicentemente à minha frente já é suficiente colírio para os olhos. Conformo-me com este pensamento.
Eis então que, quando já me encontro a algumas dezenas de metros do topo da rua íngreme, sua esquina, vejo, de repente, que uma enorme enxurrada começa a descer violentamente, arrastando as barracas dos camelôs da esquina a alguns metros; as pessoas correm desesperadamente frente à inusitada torrente que toma conta de toda a rua e vai-se aproximando cada vez mais, uma incrível e inesperada borrasca de laranjas, grandes e pequenas, cítricas e cruéis, que desce rolando ladeira abaixo formando uma onda gigante, um maremoto de frutas desvairadas que, cada vez mais, vai tomando conta da via, arrastando pessoas, cobrindo carros, levando um sujeito que inocentemente andava de bicicleta de um lado para o outro. Desce incessantemente até alcançar a pequena e bela morena que caminha a minha frente, e em seguida, a mim.
Sinto o golpe das frutas que me derrubam com violência e vão-me arrastando rua abaixo por vários metros, num movimento de subida e descida que me faz esfolar no asfalto, enquanto tento livrar-me da borrasca de laranjas. O sumo ácido das frutas esmagadas faz com que meus ferimentos ardam e a dor se intensifique, enquanto me choco com a parede de um posto de gasolina lá embaixo, no final da rua...
Sei que houve alegria e comoção por toda a cidade, tanto naquele dia como nos seguintes. Os comerciantes não mais tiveram baixas nos seus estoques de laranja por um longo tempo. Os garotos que entregavam panfletos nas ruas do centro da cidade regozijavam-se com laranjas. Nos bares, os bêbados encontravam o sabor ácido da laranja entre um gole e outro, enquanto surgiam bebidas variadas que empregavam a fruta em sua preparação. Os desempregados não mais passavam sede ao sair em busca de emprego no centro da cidade, pois o suco de laranja agora tinha preços baixíssimos. Nos restaurantes, a laranja e seu suco eram oferecidos gratuitamente e com fartura nas refeições. Surgiam variadas receitas de bolos, compotas, sobremesas e pratos que faziam a diversão das donas de casa e desafiavam os maîtres e cozinheiros.
Nunca pude saber o real motivo da inundação de laranjas que invadiu a cidade naquela insuportavelmente quente tarde de segunda-feira, pois morri no mesmo dia, soterrado pela enxurrada. Seu sumo ácido atiçava meus ferimentos, enquanto seu peso quebrava meus ossos e me impedia de respirar. As ambulâncias que foram enviadas para socorrer os feridos nunca chegaram ao seu destino, visto que todas as ruas encontravam-se tomadas pelas frutas e o trânsito tornara-se impraticável.
Mas a alma humana tem a faculdade de com tudo se conformar.
Momentos antes de a vida abandonar meu corpo, consegui o tão sonhado contato com a pequena figura morena que jazia soterrada a poucos metros do meu corpo inerte. Com muito esforço pude ouvir sua voz em meio à balbúrdia de frutas, antes que ambos expirássemos, e, num momento de reflexão que só a proximidade da morte é capaz de conceder, pude ouvi-la dizendo antes que desse seu último suspiro e deixasse de um a vez esta vida:
- Graças a Deus que foram laranjas. Imagine se fossem abacaxis...
Tadeu Sena, 10/02/2002.
Isso aqui vai servir para trazer à tona parte do lixo que eu escrevo, tanto pessoalmente quanto literariamente. Não leve nada a sério, pois eu também não levo. Mas estamos começando (eu e quem? é possível que ninguém leia isto...), e todo começo é assim... Ontem, depois do debate, descobri que existe gente mais medíocre que eu, e o pior, é candidato a presidente!!!! E eu que não sou nem vereador ainda! (hahahahaha!!!!!!) Agora sei porque o chamam "picolé de chuchu!"
Mas voltando a falar disso aqui, espero que vocês, visitantes, (se há algum) apreciem o que aqui existe. Para comemorar esta estréia (se é que ela é digna de comemoração...), vai um texto já antigo e conhecido da maioria dos meus amigos. Não tente copiar ou plagiar, já esta registrado (rs!). Pode ser ruim, mas eu tenho muito ciúme do que faço.
Cheers!!!!
A Inundação
Subia eu a rua Padre Celestino numa ensolarada tarde de segunda-feira. O sol queimava a pele de meu rosto e meus braços, fazendo-me transpirar sobremaneira, conferindo-me um aspecto pegajoso e repugnante, mas, com o mesmo efeito, dando um ar de atração e agradável volúpia à pequena figura de cabelos negros a minha frente, o que me faz concluir que a mediocridade da vida é pouco mais suportável do que imaginava momentos antes. Vou subindo a rua hipnotizado pela figura de pele morena que caminha pouco acima, em direção a uma das principais avenidas da cidade.
A poluição lançada por carros e chaminés de indústrias, aliada à tarde de calor intenso, faz com que o próprio ar se torne sujo, criando uma atmosfera pegajosa e dando um aspecto gorduroso e resinoso às pessoas e aos prédios, em meio ao asfalto quente que, em partes, vai derretendo. Afora isso, dou-me conta de que, por baixo da pesada calça jeans e da camisa (que não deixa de ser grossa para um dia de calor insuportável como este), estou completamente banhado em suor, o que me faz perceber que mesmo se pudesse ter qualquer contato com a pequena morena à minha frente, ela acharia meu aspecto repugnante, e que o simples fato de poder observa-la caminhando displicentemente à minha frente já é suficiente colírio para os olhos. Conformo-me com este pensamento.
Eis então que, quando já me encontro a algumas dezenas de metros do topo da rua íngreme, sua esquina, vejo, de repente, que uma enorme enxurrada começa a descer violentamente, arrastando as barracas dos camelôs da esquina a alguns metros; as pessoas correm desesperadamente frente à inusitada torrente que toma conta de toda a rua e vai-se aproximando cada vez mais, uma incrível e inesperada borrasca de laranjas, grandes e pequenas, cítricas e cruéis, que desce rolando ladeira abaixo formando uma onda gigante, um maremoto de frutas desvairadas que, cada vez mais, vai tomando conta da via, arrastando pessoas, cobrindo carros, levando um sujeito que inocentemente andava de bicicleta de um lado para o outro. Desce incessantemente até alcançar a pequena e bela morena que caminha a minha frente, e em seguida, a mim.
Sinto o golpe das frutas que me derrubam com violência e vão-me arrastando rua abaixo por vários metros, num movimento de subida e descida que me faz esfolar no asfalto, enquanto tento livrar-me da borrasca de laranjas. O sumo ácido das frutas esmagadas faz com que meus ferimentos ardam e a dor se intensifique, enquanto me choco com a parede de um posto de gasolina lá embaixo, no final da rua...
Sei que houve alegria e comoção por toda a cidade, tanto naquele dia como nos seguintes. Os comerciantes não mais tiveram baixas nos seus estoques de laranja por um longo tempo. Os garotos que entregavam panfletos nas ruas do centro da cidade regozijavam-se com laranjas. Nos bares, os bêbados encontravam o sabor ácido da laranja entre um gole e outro, enquanto surgiam bebidas variadas que empregavam a fruta em sua preparação. Os desempregados não mais passavam sede ao sair em busca de emprego no centro da cidade, pois o suco de laranja agora tinha preços baixíssimos. Nos restaurantes, a laranja e seu suco eram oferecidos gratuitamente e com fartura nas refeições. Surgiam variadas receitas de bolos, compotas, sobremesas e pratos que faziam a diversão das donas de casa e desafiavam os maîtres e cozinheiros.
Nunca pude saber o real motivo da inundação de laranjas que invadiu a cidade naquela insuportavelmente quente tarde de segunda-feira, pois morri no mesmo dia, soterrado pela enxurrada. Seu sumo ácido atiçava meus ferimentos, enquanto seu peso quebrava meus ossos e me impedia de respirar. As ambulâncias que foram enviadas para socorrer os feridos nunca chegaram ao seu destino, visto que todas as ruas encontravam-se tomadas pelas frutas e o trânsito tornara-se impraticável.
Mas a alma humana tem a faculdade de com tudo se conformar.
Momentos antes de a vida abandonar meu corpo, consegui o tão sonhado contato com a pequena figura morena que jazia soterrada a poucos metros do meu corpo inerte. Com muito esforço pude ouvir sua voz em meio à balbúrdia de frutas, antes que ambos expirássemos, e, num momento de reflexão que só a proximidade da morte é capaz de conceder, pude ouvi-la dizendo antes que desse seu último suspiro e deixasse de um a vez esta vida:
- Graças a Deus que foram laranjas. Imagine se fossem abacaxis...
Tadeu Sena, 10/02/2002.
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