segunda-feira, abril 04, 2011



A eternidade

Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo o salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão.

As vitrines, Chico Buarque.

Impossível precisar por que as pessoas se fotografam tanto. Mais valeria se se fotografassem os animais agora tão raros em vez dos humanos que por aí abundam e, ao contrário dos bichos, nada têm de original. Talvez seja nostalgia de retrato, pois, antes da fotografia, quando se retratava a efígie humana a pincel e tinta, até os indivíduos mais esdrúxulos ficavam interessantes nas telas dos mestres, e não são poucos os exemplos que o comprovam, as gravuras estão aí em museus e galerias como esta para comprovar a afirmação. Ademais, na imaginação dos artistas há sempre um pouco mais a oferecer que o caráter vulgar do registro da foto; os sorrisos são mais radiantes, os olhares mais altivos e serenos e as cores da face mais vivas que as expressões pouco interessantes e previsíveis da película.
Muitas vezes surgem paixões inesperadas por indivíduos que sequer existiram na realidade, mas que surgiram da mente de gente de inteligência superior; isso, não raro, acontece. A imutabilidade do aspecto físico, o não envelhecimento e a beleza retratada na pintura encantam, apaixonam, conquistam, seduzem. Desde que saí das mãos do meu criador, as paredes mudaram, trocaram de cor e textura, descascaram-se por descuido e foram restauradas, mas eu permaneço imutável. E isso já há várias dezenas de anos.

Lembro-me da primeira vez que ela apareceu na galeria. Era ainda estudante, bastante nova, e estava acompanhando uma excursão do colégio onde estudava. Em meio à explicação do guia a respeito da biografia do meu modelo – desaparecido há anos! – nossos olhares se cruzaram e foi como se uma repentina supernova acendesse-se no céu noturno, ofuscando o brilho das estrelas comuns. O uniforme escolar não prejudicava o brilho daqueles olhos e cabelos, ambos castanhos, ou a bela face arredondada. Um último olhar, de relance, selou a visita, os alunos dirigindo-se à próxima gravura numa despedida triste.
Voltou, e não poucas vezes. Conheci-lhe a família numa visita conjunta; o pai, impaciente e de pouca sensibilidade artística, mas logo percebi que herdara os olhos da mãe, que queria sair logo dali para ver obras contemporâneas. Retiraram-se, mas louvaram o interesse precoce da filha pelos clássicos.
E ela retornou muitas outras vezes com amigos, professores, gente estranha; a vi crescer, estudar, reparei em suas mudanças de aparência, novos cortes e penteados, roupas diferenciadas, foi adquirindo trejeitos e mudou de expressão e perfume várias vezes. Percebi que nos quentes dias de verão era mais lépida que nos frios do inverno, quando era mais contida e introspectiva, quase tímida e triste, mas com o mesmo fulgor no olhar que vira na primeira vez. Ficava horas fitando-me e, quando se convencia de que de mim não viria qualquer gesto ou palavra, retirava-se frustrada do salão, sempre com aquele furtivo olhar final.
Vi-lhe os cabelos perderem a tonalidade, tornando-se de um branco que ela por um tempo insistiu em tingir da cor original, tentando, em vão, preservar-lhes a juventude, a pele do rosto perder o viço e tornar-se enrugada e as carnes do corpo perder a firmeza e a volúpia de outrora, mas os olhos sempre emitiam o mesmo brilho, mesmo agora intermediados por lentes de óculos cada vez mais espessas, mais grossas.
Com o tempo, tornou-se sua companheira inseparável uma bela bengala de madeira envernizada, recurso imprescindível dos que mancam, mas toda a sua decrepitude era compensada pelo olhar, a expressão ígnea que a acompanhou por todo esse tempo, inclusive, em sua última visita, numa cadeira de rodas e com um xale vermelho sobre as pernas. E eu, como da primeira vez, envergonhado pelas roupas antiquadas, pela severidade do olhar, pelo visual fora de moda. Uma lágrima desceu-lhe dos olhos prenunciando a despedida.
Depois daquela visita, a galeria tornou-se um lugar mais frio e tristonho, e não procurei olhar mais nenhum visitante nos olhos.

João Tadeu Sena, 04/04/2011.

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